Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Viver, morar e morrer no Facebook

Quase toda a mídia especializada online errou ao informar que o Facebook havia adquirido 200 acres (cerca de 0,80 km²) de terra perto da sede da corporação e “iria construir ali uma cidade”. Eu fiquei a imaginar então o que seria a “cidade Facebook”: uma mistura de Disneylândia tecnológica fortalecida por esteroides anabolizantes da web: fofocas, todo o tipo de propaganda, ódio, ativismo, racismo, intolerância política, sexismo, misoginia, modismos fúteis, “trolagens” e tendências dentro de um mundo digital cercado e construído para um determinado tipo de população.

Na realidade, tudo não passou de mau jornalismo. O Facebook não comprou cerca de 200 acres em fevereiro de 2015. A BBC Brasil (12/2), a BBC Newsbeat (9/2), o portal Terra (12/2) e o canal R7 (12/2) online acabaram confusos com uma longa e detalhada reportagem originada no semanário Silicon Valley Business Journal (6/2), escrita pelo repórter Nathan Donato-Weinstein, que vem acompanhando as compras de propriedades do Facebook desde sua concepção em um quarto da Universidade Harvard.

Ele informou em detalhes as transações imobiliárias da rede social em Menlo Park, cidade ao sul da baía de São Francisco. Em 2011, o Facebook alugou 57 acres (0,23 km²) da antiga Sun Microsystems. No ano seguinte, mais 22 acres (0,089 km²) foram incorporados ao patrimônio da rede e entregues ao premiado arquiteto Frank Gehry para construção de um enorme hall com teto único e plano para escritórios. Em 2014, mais 60 acres (0,242 km²) foram acrescentados com a compra da sede da TE connectivity. Finalmente, em fevereiro deste ano, o complexo high tech da Prologis foi adquirido. Mais 56 acres (0,226 km²). O total é 195 acres, ou 0, 789 km². Veja na figura abaixo:

FBexpansion

 

Não foi comprada tanta terra neste ano, tampouco há expectativas do Facebook fazer qualquer coisa lá tão cedo. Quanto mais construir cidades. O local ainda é fonte de empregos e tributos, e a cidade quer mantê-los. O Facebook, e os outros grandes da web, não geram muitos empregos nem pagam muitos impostos. São máquinas de sugar dinheiro e vidas que parecem estar acima da lei nos Estados Unidos.

Comunidades fechadas

Ao mesmo tempo é constrangedor ver autoridades públicas diminuídas diante do poder de uma empresa nova comandada por um rapaz de 30 anos de idade. É triste testemunhar governos locais apoiarem, sem opção, o avanço das propriedades do Facebook no condado de San Mateo. A população local preocupa-se com o futuro de seus jovens, e quer maior apoio do Facebook, que respondeu com um programa para estagiários (Facebook Academy) e uma série de programas de desenvolvimento comunitário.

A ideia de uma “cidade-facebook” foi uma invenção da mídia online. Na realidade, o que acontece no momento com o Facebook é uma renovação de sua sede na cidade de Menlo Park e sua respectiva repercussão no planejamento e possível redesenho da urbe. Não há previsões para construção de cidades ou coisa parecida. Tudo não passou de delírio da mídia online, que parece não ter sido capaz de ler e resumir todo o enorme artigo do Silicon Valley Business Journal.

O executivo-chefe de propriedades do Facebook, o arquiteto John Tenanes, não acredita que o Facebook vá fazer nada no curto ou mesmo no médio prazo. “Ele não sabe quando a companhia poderá começar a ocupar o espaço”, anotou o periódico de Silicon Valley. Ao mesmo tempo, a rede de Zuckerberg iniciou uma serie de ações sociais para o desenvolvimento da comunidade local, e demonstrou interesse em integrar sua sede ao seu entorno. O Facebook e outras “grandes” da web já foram denunciados por Tim Berners-Lee por “cercarem áreas da web”, capturarem dados de usuários e sabotarem a web com seus apps para smartphones em 2010, em artigo publicado na revista Scientific American (1/12) e reproduzido pelo Departamento de Computação da Universidade da Virginia.

Em seu longo artigo, Berners-Lee fez uma crítica séria à imprensa. Explicou que a web é “um programa-roda na internet” e os apps de smartphones não fazem parte dela: pertencem a corporações que capturam e manipulam seus dados visando lucros. O fundador-mor da web criticou também a Apple e o Facebook por afastarem-se da finalidade básica da web, que é manter a neutralidade na rede, a possibilidade de qualquer um conectar outra pessoa ou ente dentro dela e impedir a criação de comunidades fechadas em si mesmas. Infelizmente, as coisas não evoluíram nesta direção. As comunidades fechadas proliferaram. Como o Facebook.

A base da liderança

Mesmo sem nenhum plano para o momento, o Facebook quer ser parte importante dos rumos da cidade e seus arredores. Já ofereceu seus técnicos em engenharia para abrir uma ciclovia na ponte Golden Gate, que não conseguiu verba da cidade para completar 1,5 km da estrutura de 2.734 metros que simboliza a própria cidade de São Francisco. E o Facebook quer deixar sua marca nela.

Mesmo sem planos imediatos, o arquiteto John Tenanes e seus colegas no Facebook querem construir um novo tipo de sede corporativa mais integrada na comunidade, sem abrir mão da sagrada privacidade da empresa. A ideia de uma “cidade-facebook” só faz sentido no ponto de vista da expansão da companhia. A turma de Zuckerberg quer apropriar-se de terras para ter maior acesso à baía de São Francisco e seus terminais ferroviários. Quer trazer seus funcionários para perto. Seus urbanistas já descobriram que a mudança dos trabalhadores para subúrbios afastados causa prejuízo à empresa.

O que mais impressiona nas aquisições de terras do Facebook é sua evidente vontade de interferir no desenvolvimento urbano e usar as economias de escala proporcionadas pela aglomeração de empresas tecnológicas do Vale do Silício para tornar-se ainda maior. Aumentar seu território é aumentar seu poder sobre o estado, em todos os seus níveis. O Facebook é seu próprio país, com suas próprias leis. Seus executivos discutem de igual para igual com altas autoridades federais. Dizem “não” ao presidente Barack Obama sem preocupação.

A América de nossos tempos salvou-se do naufrágio graças, em grande parte, à atuação das grandes companhias de base tecnológica surgidas há muito pouco tempo: Google, Facebook, Amazon e Apple, principalmente, seguidos pelo Twitter, Yahoo, eBay e outras. Elas são a base da liderança tecnológica americana no mundo ocidental e no planeta. Se o Facebook é um grande espião e vendedor de nossos gostos e escolhas na web apenas como uma rede social, o que será de nós se ele se amplia no espaço a ponto de criar sua própria realidade concreta, o seu próprio espaço urbano redesenhado para atender aos lucros da empresa?

Um bom exemplo do que pode acontecer com a pequena Menlo Park é a cidade de Las Vegas (estado de Nevada), em seu início. Lá, um grande negócio (o jogo) ficou muitos anos em mãos criminosas que, por meio do controle do estado, legislavam em causa própria e em defesa de seus crimes. O “mundo Facebook” não é um mundo criminal, mas almeja poder de estado. Ou maior. Dar poder a tal ponto a uma só empresa (ou a um pequeno grupo delas), é recuar aos tempos dos “barões ladrões” do capitalismo selvagem do início do século na economia americana. Quando algumas companhias disputavam monopólios nacionais em um jogo de soma zero, ou seja, o que uma ganhava era igual ao prejuízo da outra.

Explorando e espionando

Esse tipo de competição, onde o vencedor leva tudo, tem o potencial de destruir o mercado e acabar com a competição: cria um mundo autárquico, autossegregado de seu entorno sociocultural e povoado por autistas e autômatos que não sabem conduzir algo tão complexo como espaços povoados por gente comum, suas necessidades e ansiedades. Sua lógica operacional é a do segredo, enquanto a dos governos (pelo menos em tese) é a da transparência aos olhos do público. Corporações não existem para governar o povo.

O Facebook mudou nosso modo de viver o mundo e como nos relacionamos em sociedade. E lucrou muito com isso. Tanto que quer nossa contribuição mesmo depois do fim de nossos dias neste mundo. O Wall Street Journal (12/2) informou que o Facebook vai lançar um novo recurso, o “contato-legado” (legacy contact) “para manejar partes de postagens” de gente falecida na megarede. O “contato” será alguém designado pelo usuário para tomar conta de seus dados depois de sua morte.

Embora nascido de necessidade prática e legal das famílias dos que partiram deste mundo e do Facebook, o “contato-legado” poderá agir em seu nome para anunciar eventos promovidos pelas famílias em homenagem a seus entes queridos. Poderá também “baixar seus arquivos de postagens e fotos, mas não os conteúdos de suas mensagens privadas”. Não será permitido também alterar postagens originais de usuários falecidos, esclareceu o periódico. O contato-legado também poderá apagar a conta do usuário morto.

O Wall Street Journal ainda informou que “tudo isso é opcional”, e já está disponível para usuários (vivos ou mortos), a partir deste mês, devendo atender a outras partes do mundo em pouco tempo. Se o usuário falecido não houver manifestado em vida vontade de preservar suas postagens e conteúdos no Facebook ou nada for feito ou requisitado pela família dele, a conta será congelada, em um processo chamado de “memorialização” pela super-rede social.

O Facebook capturou boa parte de nossas vidas: nossos gostos, nossas escolhas amorosas, nossos discursos idealistas, aprovações, ideias e discordâncias. É o maior identificador da web, e quer nossa presença nele mesmo depois de nossa partida deste mundo. A ideia mórbida de um “curador” de legados de falecidos no Facebook vai manter a atividade de muitas contas. Vai continuar a contribuir para gerar mais renda para a companhia, através das interações surgidas em contas de gente que não está mais aqui entre nós.

A rede de Zuckerberg ofereceu ao mundo uma nova maneira de nos conectarmos com o mundo, as pessoas e o comércio. Consumiu muito tempo dos usuários, enquanto manipulava seus dados em troca de lucros. Foi importante para várias gerações, e agora também quer nos oferecer uma nova experiência: uma tumba na web. É lúgubre, mas muita gente vai gostar da ideia de “eternizar” imagens engrandecidas de si mesmos na rede. Ou simplesmente responder à necessidade humana de sempre ser lembrado.

Não questiono a tristeza legítima da dor de uma perda. Sou humano, e sei o que isso significa.O que condeno é a intenção de ganho mercantil a custa da dor daqueles que sofreram com perdas irreparáveis de gente querida.

O Facebook (gostem ou não seus críticos) é parte de nossas vidas. E agora quer que fiquemos eternizados lá dentro para sempre, encerrados em túmulos virtuais escolhidos e desenhados por nós mesmos. A ideia vai atrair muita gente, e eu não vou criticá-la por uma simples razão: a ambição do Facebook impede que ele perceba a capacidade criativa da população em contornar e dar outros rumos às novas invenções virtuais da rede. O legado de um ex-usuário poderá trazer surpresas inesperadas. O impacto de tal iniciativa ainda não pode ser avaliado, mas muitos sobressaltos e comoções podem surgir da lúgubre ideia.

Sempre atento ao nosso narcisismo, o Facebook vem explorando e espionando nossas vidas pessoais em busca de lucros e mais lucros. E agora nos oferece um lugar na eternidade virtual da web, onde tudo aquilo que imaginávamos ser será imortalizado e continuará a manter nossas presenças vivas e lucrativas para a empresa. O Facebook transformou nossas vidas, e agora espera continuar a nos acompanhar mesmo depois que tivermos partido deste planeta. Ambição maior não há.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor