Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A era da contrainformação

Duas ideias fazem parte do cânone do pensamento contemporâneo no tocante ao jornalismo. A primeira é que a internet é a mais poderosa força que vem convulsionando a mídia de notícias. A segunda é que a internet e os instrumentos de informação e comunicação que ela gerou – como YouTube, Twitter e Facebook – estão transferindo o poder dos governos à sociedade civil, blogueiros e cidadãos conectados ou que agem como repórter de rua.

É difícil discordar das duas ideias. Mas elas ocultam um fato, ou seja, os governos estão tendo tanto sucesso quanto a Internet em bloquear a mídia independente e determinar que informações devem chegar à sociedade. Além disso, em muitos países pobres ou naqueles com regimes autocráticos, as ações governamentais são mais importantes do que a Internet em definir como a informação é produzida e consumida e por quem.

É um paradoxo curioso: a censura está florescendo na era da informação. Teoricamente, as novas tecnologias tornariam mais difícil, basicamente impossível, para os governos controlarem o fluxo de informação. Alguns analistas afirmam que o nascimento da internet foi o prenúncio da morte da censura. Em 1993, John Gilmore, pioneiro da internet, disse ao Time que “a net interpreta a censura como prejudicial e a dribla”.

Hoje os governos vêm driblando os efeitos libertadores da internet. Como os empreendedores, eles confiam na inovação e na imitação. Na Hungria, Equador, Turquia, Quênia e outros lugares as autoridades copiam autocracias como a Rússia, Irã ou China, redigindo notícias importantes e criando agências estatais de mídia. E vêm criando também ferramentas sutis para complementar instrumentos de ataque a jornalistas.

Como resultado, a promessa da internet de liberar o acesso a fontes diversas e independentes de informação é sobretudo uma realidade para uma minoria da humanidade que vive em democracias maduras.

Como isto vem ocorrendo? A internet parece capaz de reescrever qualquer equação de poder em que a informação é uma variável. Mas esta não é uma lei universal. Quando começamos a mapear exemplos de censura encontramos muitos casos descarados à vista de todos. Mas o mais surpreendente é até que ponto isto é oculto. O escopo da censura é difícil de ser avaliado. Em primeiro lugar, alguns instrumentos de controle da mídia são disfarçados como transtornos do mercado. Em segundo lugar, em muitos locais o uso da internet e a censura estão rapidamente se expandindo em conjunto. Em terceiro, embora a internet seja considerada um fenômeno global, atos de censura podem parecer provincianos ou nacionais – numa palavra, isolados. As evidências indicam o contrário.

Na Venezuela, por exemplo, os três fatores coexistem. O uso da internet está entre os de mais rápido crescimento no mundo, mesmo se o governo persiste com um programa agressivo, mas muito imperceptível, de censura. Os métodos usados pelo Estado incluem uma influência cada vez mais forte sobre a mídia independente por meio de compras utilizando empresas de fachada e compradores fantasmas – uma tática usada em todas as partes. Tamoa Calzadilla, ex-editora de Últimas Notícias, o maior jornal da Venezuela, renunciou no ano passado depois de compradores anônimos assumirem o controle do jornal e ela ser pressionada a mudar uma reportagem para se adaptar às posições do governo.

Ascensão e queda

A censura era um exercício de cortar e colar. Agentes do governo inspecionavam o conteúdo dos jornais, revistas, livros ou filmes e suprimiam ou alteravam o texto de modo que somente informações julgadas aceitáveis chegavam ao público.

Quando surgiu o jornalismo online nos anos 90, a filtragem, o bloqueio e o hacking substituíram as tesouras e a tinta preta. Mas ativistas especializados na tecnologia rapidamente encontraram meios para escapar dos censores digitais. Durante um tempo parecia que redes ágeis e descentralizadas de ativistas, jornalistas e críticos tinham controle sobre as burocracias governamentais centralizadas, hierárquicas e difíceis de manejar. Mas então os governos os alcançaram.

Em nenhum lugar as contradições desta disputa estão mais à mostra como na China. O país com o maior número de usuários de internet e a população conectada que mais cresce no mundo também é o maior censor. Dos três bilhões de usuários no planeta, 20% vivem na China (10% nos Estados Unidos). O governo mantém a “Grande Muralha” digital para bloquear conteúdo inaceitável, incluindo websites de notícias estrangeiros. Cerca de dois milhões de censores policiam a internet e as atividades dos usuários. Mas uma pesquisa feita pela BBC em 2014 concluiu que 76% dos chineses sentiam-se livres da fiscalização do governo. A taxa mais alta dos 17 países pesquisados.

A China não vê nenhum problema em reprimir duramente a cobertura de mídia que seja crítica, mas as autoridades também exercem a censura de modo sutil, o que torna difícil para a sociedade ver o que ocorre. Em Hong Kong, onde por tratado o respeito à imprensa livre é obrigatório, Pequim adotou uma série de medidas para limitar o jornalismo independente, incluindo atos de violência contra editores e prisões de repórteres. Mas silenciosamente realiza seus ciberataques, exige a demissão de jornalistas e colunistas críticos e a retirada de propaganda por empresas privadas, incluindo multinacionais. A Associação de Jornalistas de Hong Kong descreveu 2014 como “o ano mais sombrio para a liberdade de imprensa em décadas”.

Esta combinação de métodos inovadores e tradicionais criou um cardápio variado de censura jamais visto. A censura furtiva seduz governos autoritários que querem dar o ar de democracias – ou pelo menos de não serem ditaduras no velho estilo. Nas democracias intolerantes, que são em número cada vez maior, o governo procura manter o controle da mídia e ao mesmo tempo não deixar rastros. Uma pesquisa global sobre ataques à imprensa nos dias atuais mostra governos exercitando pressões, diretas e indiretas, como parte de um mercado emergente em expansão no controle da informação.

Na Rússia, o presidente Vladimir Putin vem reformulando a área da comunicação à imagem do governo. Em 2014 muitos órgãos de mídia foram bloqueados, fechados ou forçados a mudar sua linha editorial por pressão do governo. Ao mesmo tempo foram inauguradas agências de informação do próprio governo, que também sancionou leis limitando o investimento estrangeiro nos meios de comunicação russos. A medida visou publicações como o jornal Vedomosti, respeitado pela sua independência e de propriedade de grupos de mídia estrangeiros como Down Jones, o Financial Times Group e o Sanoma da Finlândia.

As revelações feitas por Edward Snowden deixaram claro que a internet pode ser um instrumento do governo para bisbilhotar a vida dos cidadãos. Quanto a se a espionagem interna nos EUA ou Grã-Bretanha deve ser qualificada como censura, este é um tema de debate. Mas a autorização do governo Obama para grampear telefones de jornalistas e processos por vazamentos agressivos tiveram um efeito intimidador bem documentado nas informações da segurança nacional. No mínimo, a espionagem eletrônica do governo significa que nenhum trabalho jornalístico sobre assuntos secretos pode em sã consciência garantir o anonimato da fonte.

Estas políticas de segurança nacional colocam os EUA entre outros países, como Rússia, que veem a internet como ameaça e meio de controle. Em vez de se evadir das acusações de que realizam atos de espionagem pela internet, Rússia, Índia e Austrália transformaram a prática em lei.

Os jornalistas temem ser pegos nessa emboscada eletrônica e frequentemente são alvos específicos dela. A China espiona contas de e-mail de jornalistas estrangeiros e invade servidores de jornais dos EUA. A NSA espionou a Al-Jazira. Bielo-Rússia, Rússia, Arábia Saudita e Sudão monitoram as comunicações de jornalistas, informou a entidade Repórteres sem Fronteiras.

Para cada governo que tem sucesso no controle do livre fluxo da informação ou na repressão de jornalistas, há um exemplo contrário. Cidadãos corajosos e tecnologicamente hábeis encontraram maneiras de superar, contornar ou eliminar controles oficiais. Ou estão dispostos a correr o risco de se opor à alegação de um governo de que é o único a ter direito de escrever a história.

Mas eles estão lutando contra uma tendência em que um número cada vez maior de governos vem eliminando os pesos e contrapesos que limitam o poder do executivo. Da Rússia à Turquia, da Hungria à Bolívia, líderes de governo colocam no Judiciário pessoas que lhes são leais e realizam eleições que privilegiam aliados. Neste ambiente político, a mídia independente não consegue sobreviver por muito tempo.

A internet pode redistribuir o poder. Mas seria ingênuo imaginar que é a solução tecnológica simples para pôr fim à determinação de governos e lideranças de concentrar o poder e fazer o que for necessário para mantê-lo. A censura verá sua ascensão e queda à medida que a inovação tecnológica e a sede de liberdade entrarem em choque com governos propensos a controlar seus cidadãos – a começar pelo que eles leem e ouvem. Para paquistaneses, a autocensura e o suborno são muito comuns.

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Moisés Naím é ex-diretor executivo do Banco Mundial e membro do Carnegie Endowment for International Peace. O artigo foi escrito com Philip Bennet, diretor do The Dewitt Wallace Center for Media and Democracy, na Duke University