Saiu nova edição, aumentada, de O preconceito linguístico, de Marcos Bagno (São Paulo, Parábola Editorial). A primeira publicação foi em 1999, e provocou algum alarde. Por duas razões: uma foi colocar na praça, em tom de divulgação e com muitos dados empíricos, teses que destroem muitos lugares-comuns sobre o português. É incrível (isto é, não se pode acreditar) que, depois de tantas pesquisas feitas nos últimos séculos sobre línguas, a ‘sociedade’ ainda mantenha certas crenças (a mais grave é a noção corrente de erro).
A segunda razão do barulho que o livro causou entre alguns ‘sábios’ (colunistas e outros-istas que falam sobre língua em jornais e TV) foi seu tom um pouco duro com a mentalidade gramaticoide de muitos ‘intelectuais’, alguns dos quais foram nomeados.
Acrescente-se que, nas faculdades em que é lida, a obra não causa nenhum escândalo, pois que apresenta dados, fatos, a cuja análise introduz. Assim, um estudante de questões de língua pode comportar-se como um de botânica: estuda fatos.
Essa obra de Bagno demonstra (ele tem outras que apresentam a mesma característica) uma incrível capacidade de provar o que diz, exibindo dados linguísticos aos montes, seja do português falado ou escrito, antigo ou moderno, seja de outras línguas, aparentadas ou não à nossa.
O que fica mais claro do que tudo nos trabalhos dele, dos quais esse livro é uma boa amostra, é que os defensores da gramática dita tradicional não a conhecem e que os escritores apresentados como exemplos de cultivo da ‘pureza’ da língua com frequência empregaram construções que as gramáticas apresentam como exceções e que a escola, a mídia e mesmo uma intelectualidade desinformada condenam, pasmem, em nome da gramática e dos escritores.
De quebra, Bagno defende os linguistas, atacados frequentemente por afirmações que nunca fizeram; não só nunca as fizeram, como são frontalmente contrárias às que eles defendem expressamente em suas obras, criticadas sem serem lidas (os críticos nunca mostram em qual página de qual texto um linguista escreveu o que lhe atribuem).
(Tenho um bom exemplo, embora pessoal: escrevi um livrinho que se chama Por que (não) ensinar gramática na escola, que defende o ensino da norma culta (especialmente da escrita) e que foi considerado um ataque às gramáticas. Gente que se acha esperta não viu os parênteses no título e, não tendo lido o livro (só tem 90 páginas!), achou que era seu dever afirmar que se tratava de obra leviana e contra a gramática).
O estranho (ou não?) é que esse fenômeno só ocorre em relação à língua: ninguém se espanta com novas análises dos buracos negros, com novas galáxias, com novidades no campo da genética ou da química, nem mesmo com novas descobertas históricas, mas todos pensam que sobre as línguas se deve repetir o que disseram os gramáticos, como se eles fossem todos iguais e fossem também os guardiães de verdades reveladas.
Contradições da voz passiva
Mas o que dizem os gramáticos? Bem, seria exigir demais desses ‘sábios’ que eles consultassem algum. Sua doutrina (desses sábios) é sempre um resumo malfeito das gramáticas (infelizmente, é o que fazem também os livros didáticos, em sua maioria).
Vou dar só um exemplo. Todos os alunos brasileiros aprendem na escola que não se deve dizer “vende-se filhotes”, porque é um erro, e que se deve dizer “vendem-se filhotes”. O argumento é que o sujeito da oração é ‘filhotes’. Estando no plural, leva o verbo para o plural.
Ora, essa afirmação vai contra a intuição de todos os falantes, que ‘sentem’ (interpretam) filhotes como o objeto de ‘vender’ (-Vende-se o quê? -Filhotes) e não o sujeito (-Quem vende? – Uns caras / alguém lá na praça [e não os próprios filhotes]).
Isso não é novo. Sai Ali mostrou (em 1908!) que a tal passiva sintética é uma invenção de gente sem lógica. E forneceu um argumento mortal: quem é que, lendo em uma placa pregada em uma casa ‘aluga-se esta casa’ não entende que a casa está vazia, disponível para alugar (e ser alugada, óbvio)? E que, portanto, a frase não é uma passiva, que seria ‘esta casa é alugada’?
Mas quem lê Said Ali? Não os ‘formadores de opinião’. Eles só leem apostilas ou, no máximo, o manual de redação do seu jornal preferido (ou telefonam para um consultor…).
Pode ser que citar Said Ali não seja um bom argumento, porque ele não escreveu um livro didático ou uma gramática escolar. Então, citemos Evanildo Bechara, que não é nenhum revolucionário, nem petista, nem bolivariano (mas também não é ignorante).
Na página 178 de sua Moderna Gramática Portuguesa (Rio, Editora Lucerna), que é bem conservadora (se fosse um biólogo e tivesse posições análogas, não seria mais lido, a não ser para uma história do campo), ele escreve o seguinte, logo depois de listar casos de sujeito indeterminado (vive-sebem, precisa-se de empregados etc.):
“Observações finais: Pelos exemplos acima, o se como índice de indeterminação de sujeito – primitivamente exclusivo em combinação com verbos não acompanhados de objeto direto – estendeu seu papel aos transitivos diretos (onde a interpretação passiva passa a ter uma interpretação impessoal (grifo meu, SP): Vendem-se casas = ‘alguém tem casas para vender’) e de ligação (É-se feliz). A passagem deste emprego da passiva à indeterminação levou o falante a não mais fazer concordância, pois o que era sujeito passou a ser entendido como objeto direto (idem, SP), função que não leva a exigir o acordo do verbo:
Vendem-se casas = (‘casas são vendidas’) -> Vendem-se casas (=‘alguém tem casa para vender’) -> Vende-se casas (idem, SP).”
Bechara acrescenta que “este emprego ainda é antiliterário, apesar da multiplicidade de exemplos” (mas quem quiser ver uma lista de casos pode consultar outro livro de Bagno,Não é errado falar assim, também da Parábola). Nesse livro, um dos exemplos, aliás, é de Carlos Heitor Cony (literário, portanto): “… reclamei do primarismo com que se rotulaos outros”. Eu mesmo anotei, há algum tempo, a seguinte passagem de Luis Fernando Veríssimo (literato?): sua coluna ‘Tim-Tim’ (Correio Popular, 14/02/2008), começa assim: “Não se vê mais patacas e dobrões, a não ser em filme de pirata”. E quase no final, “…compreende-se os abusos”.
Razões finais
Meu último argumento é que, se ‘filhotes são vendidos’ for uma passiva de ‘vende(m) filhotes’, isso se deve ao simples fato de que todas (talvez nem todas) as ativas com estrutura ‘sujeito – verbo transitivo direto – objeto direto’ podem ter uma passiva, que é sua sinônima. Mas que haja uma passiva sinônima de uma ativa não é a mesma coisa que uma ativa ser uma passiva… Ora, quando se escreve ‘vendem-se casas’ = ‘casas são vendidas’, o que se diz é apenas que a segunda oração é sinônima da primeira, assim como ocorre com ‘ele recebeu o aviso’ = ‘o aviso foi recebido por ele’. Mas é isso, no máximo, que a passiva garante: uma sinonímia. Repito: ela não garante que a ativa seja uma passiva…
No início do parágrafo anterior, escrevi “se … for uma passiva”. Por quê? É que a sinonímia de ‘vendem-se filhotes’ = ‘filhotes são vendidos’ não é absoluta. ‘Vendem-se’ significa ‘estão à venda’. O leitor acha sinceramente que esse é também o sentido de ‘filhotes são vendidos’? Se você fosse um vendedor de filhotes, faria o anúncio ‘filhotes são vendidos’? Eu, não!
Exponho a seguir uma dificuldade para meu argumento, que nem por isso vou esconder. Observe-se bem o que ocorre na transformação passiva de uma ativa como ‘vende(m) filhotes’. A passiva é ‘filhotes são vendidos’. Ou seja, a passiva não inclui o agente da passiva, isto é, o sujeito da ativa (‘se’). Ou seja, a passiva não é ‘filhotes são vendidos por se’.
Qual seria a razão? Tento explicar: a sequência ‘por se’ é impossível em português. ‘Por’ só aceita pronomes oblíquos de primeira e de segunda pessoas. São agramaticais orações como ‘*eu fui visto por se / por lhe’ (a construção é ‘por ele/a’). Mas são gramaticais as construções ‘foi visto por ti / por mim’. Até ocorre ‘por si’ (cada um por si), mas nunca ‘por se’. É por esta restrição que não há passivas como ‘*filhotes são vendidos por se’. Mas, além disso, para que explicitar um sujeito indeterminado?
Um parêntese: em Portugal, ouvi na TV uma propaganda de um programa: “um programa feito por si”, que, claro, não significa que o programa se fazia a si mesmo. No Brasil, essa propaganda seria: “um programa feito por você” (isto é, pelo telespectador). Esta sim é uma verdadeira passiva: Você faz o programa -> O programa é feito por si (você).
Disse acima que Bagno critica os gramaticoides. Repito. E explico: se lessem os gramáticos, isto é, as gramáticas, não diriam o que dizem. Se fossem decentes (intelectualmente), pelo menos não o diriam em nome deles. Ou delas.
Eu queria apresentar um resumo da análise que Bagno faz das passivas, discutindo uma coluna de Dad Squarisi (que, no Brasil, passa por saber português…), coluna que repete, em tom empinado, a simplória doutrina sobre a passiva sintética. Faltou espaço. Mas o leitor pode ir ao livro. São apenas13 páginas…
Para concluir (mesmo!), apresento uma tese típica de linguistas: nada contra (nada mesmo) que se diga ou escreva ‘vendem-se filhotes’. Mas está na hora de não haver mais nada contra ‘vende-se filhotes’.
Pelo menos pelas duas razões apresentadas pelos defensores do português que consideram culto: a) escritores (e, muito mais, jornalistas) empregam o singular, como vimos em três exemplos (no mundo da escrita, são milhares); b) gramáticos abonam.
Basta lê-los. Mas é preciso lê-los.
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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas