Em mais um caso vergonhoso para o jornalismo científico, o provedor Terra divulgou na quinta-feira (26/2) a notícia “Nova teoria pode provar começo da vida e descarta Deus“. Da mesma forma que apontamos no artigo ‘Soft tissue’ não são ‘tecidos macios’, neste Observatório da Imprensa, esse novo erro também foi gerado por um total desentendimento da notícia traduzida e por não buscar uma fonte confiável para os dados apresentados.
Segunda a notícia veiculada e atribuída ao jornal The Independent, um cientista da Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, teria escrito para o website da Fundação Richard Dawkins dizendo que “uma/sua” (não fica claro, pois a tradução ficou extremamente sem sentido nesse ponto) nova teoria poderia colocar Deus “na geladeira” e aterrorizar os cristãos. Ainda segundo a notícia do Terra, o estudo demonstraria que a vida não teria surgido de um acidente, ou teria sido resultado de sorte de uma “sopa primordial”, mas ela teria surgido por necessidade – resultado das leis da natureza – e seria “tão inevitável quanto rochas rolando ladeira abaixo”. A matéria do provedor aponta como um empecilho para o entendimento da origem da vida a compreensão de como os seres vivos – que tendem a ser muito melhores em tirar energia do ambiente e dissipá-la como calor – poderia acontecer vindo de seres sem vida.
Nesse momento a matéria perde seu ponto informativo e se transforma em um espantalho do que está escrito no The Independent.
Entre colunistas e físicos
Segundo a matéria, a teoria apresentada na revista científica Quanta Magazine por Paul Rosenberg, do MIT, responderia a essa questão. Sua teoria demonstraria que se um grupo de átomos for submetido por um longo tempo a uma fonte de energia, ele irá se reestruturar para dissipar mais energia. Assim, a emergência da vida não poderia ter sido por sorte de arranjos atômicos, mas sim, de um inevitável evento se as condições fossem corretas. O provedor ainda atribui a seguinte afirmação a Paul Rosenberg: “Você começa com um grupo aleatório de átomos; se você brilhar a luz sobre ele por muito tempo, não deve ser tão surpreendente que você obtenha uma planta.”
Além disso, a notícia ainda afirma que Rosenberg lembra que a ideia de que a vida poderia ter evoluído a partir de coisas não-vivas tem sido afirmada há algum tempo, tendo sido descrita por filósofos pré-socráticos.
Essas informações são provenientes da matéria “New theory could prove how life began and disprove God“, publicada pelo The Independent, e como podemos verificar na matéria original, diversas informações são divergentes. A primeira que podemos destacar é que Paul Rosenberg não é físico e muito menos o criador da teoria apresentada, mas um colunista do site Salon.
A história por trás da noticia
Toda a confusão está relacionada à matéria “God is on the ropes: The brilliant new science that has creationists and the Christian right terrified“, de Paul Rosenberg, publicada no Salon em 3 de janeiro. Nessa matéria, Rosenberg tece diversos comentários sobre o artigo científico publicado pelo jovem professor do MIT Jeremy L. England, no The Journal Of Chemical Physics 139 (“Statistical physics of self-replication“) e na revista de divulgação Quanta Magazine (“A New Physics Theory of Life“). Além disso, Rosenberg extrapola o status atual da hipótese de England e o apresenta como uma resposta definitiva para a origem da vida, afirmando ser esse um grande problema para os negacionistas científicos ao redor do mundo. Essa mesma notícia foi divulgada no site da Fundação Richard Dawkins no dia 24 de fevereiro e recebeu diversos comentários positivos às declarações de Rosenberg.
Baseado nos dados acima, The Independent apresentou sua matéria “New theory could prove how life began and disprove God“ resumindo de forma extremamente simplista os detalhes relacionados e o provedor Terra, mais uma vez, gerou uma versão própria transformando o colunista e escritor Paul Rosenberg em físico e criador da teoria citada. Mais um caso ligado à baixa qualidade dos tradutores e à ausência de jornalistas científicos na redação.
Nova teoria física da vida
A tese de Jeremy L. England já havia sido apresentada na revista Scientific American nos primeiros dias de 2014. A matéria noticiava que o pesquisador teria desenvolvido uma fórmula matemática que poderia explicar a capacidade de seres vivos serem melhores em absorver a energia do seu ambiente e dissipá-la em forma de calor em comparação a aglomerados inanimados de átomos de carbono. A fórmula, baseada em uma física já conhecida, indicaria que quando um grupo de átomos é guiado por uma fonte externa de energia (tal como o sol ou combustíveis químicos) e cercada por um meio que mantenha o calor (como o oceano ou a atmosfera), ela provavelmente iria se reestruturar gradualmente, de forma a dissipar cada vez mais energia. Isso poderia significar que, em determinadas condições, a matéria iria inevitavelmente adquirir o atributo físico associado à vida.
Diversos pesquisadores importantes têm acompanhado o trabalho do dr. England, como Alexander Grosberg, professor de Física na Universidade de Nova York, e Atilla Szabo, do Laboratório de Físico-Química do National Institutes of Helth, demonstrando um crescente interesse em sua hipótese e resultados. Mesmo assim, a pesquisa também tem recebido críticas de alguns cientistas, como Eugene Shakhnovich, professor de Química, Bioquímica e Biofísica na Universidade de Havard, que considera as ideias interessantes e potencialmente promissoras, mas ainda bastante especulativas. Segundo os especialistas, os resultados teóricos de England são considerados válidos, faltando apenas uma forma de testar essa interpretação no laboratório. Algo que ele já está trabalhando.
Abiogênese e termodinâmica
O trabalho de Jeremy England trata justamente de dois temas que renderam diversos debates no meio científico durante muitos anos – a abiogênese e a termodinâmica. Esses dois termos são constantemente utilizados para tentar invalidar as hipóteses para o surgimento da vida na Terra e a evolução biológica.
O termo abiogênese na história da Ciência pode ser empregado para pelo menos duas hipóteses diferentes: geração espontânea e origem química da vida. No seu artigo, Rosenberg comete um erro comum de misturar a questão da biopoese com a visão aristotélica. Tratando-se da primeira definição, ela foi defendida por diversos filósofos e pensadores; sendo que esse processo era explicado de diferentes formas por cada filósofo citado. Um dos maiores defensores dessa visão foi Aristóteles, que juntou diversos conceitos anteriores e formulou uma síntese que foi utilizada e defendida por muito tempo. Em sua síntese, Aristóteles descrevia que os animais eram gerados normalmente por organismos idênticos, mas podiam também originar-se de matéria inerte. Ele dizia que todas as coisas possuíam um “principio passivo”, que seria a matéria, e um “principio ativo”, que seria a forma. Com isso, todas as coisas existentes surgiam através de uma conjugação de principio ativo e principio passivo. Essa ideia foi transmitida durante os séculos seguintes por um grande número de pensadores, sendo que pesquisadores sérios chegaram a produzir receitas para geração espontânea de organismos, como o médico Johann Baptista van Helmont, que sugeriu a seguinte receita para produção de camundongos: “Num jarro, colocar algumas roupas de baixo suadas e depois cobrir com trigo. Após 21 dias ocorre a geração de camundongos adultos e totalmente formados.”
Essa corrente teórica defendia o surgimento de seres vivos totalmente formados a partir da matéria inanimada num curto espaço de tempo, e não o surgimento da vida primitiva através de matéria inorgânica. Essa visão de abiogênese aristotélica ficou bem estabelecida durante séculos na comunidade cientifica e chegou a ser defendida, por exemplo, por Lamarck, que acreditava numa transmutação das espécies, mas dizia que as espécies mais basais surgiam por geração espontânea e se transformavam nas mais complexas com o passar do tempo, nos levando à existência de espécies mais e menos complexas durante o tempo geológico (nesse caso com grau progressista, por Lamarck acreditar nessa característica evolutiva). Essa hipótese só foi desacreditada pela comunidade científica depois dos experimentos realizados por Pasteur e Tyndall, que comprovaram em definitivo a impossibilidade de surgimento de seres vivos totalmente formados a partir da matéria inanimada num curto espaço de tempo, e não que a vida extremamente primitiva não possa se formar a partir de moléculas cada vez mais complexas.
Já a segunda definição para abiogênese está interligada à área de estudo da origem química da vida, e ao trabalho de Jeremy England, sendo as vezes chamada de evolução química, biopoese (do grego bio, vida, + poiéo, produzir, fazer, criar) e até mesmo sendo definida como biogênese na visão de Teilhard de Chardin. Diferente do conceito aristotélico, essa forma de abiogênese não propõe o surgimento espontâneo de formas de vida complexa, e sim, o surgimento da vida desde moléculas simples até formas mais complexas, onde essas moléculas precursoras estariam entre a “vida” e “não vida” de forma muito similar aos príons e vírus hoje. Essa vida não teria surgido em um evento único podendo ter surgido em diversos momentos do tempo geológico e de formas diferentes, passando por processos de extinção até se fixar. Dentro dessa visão de origem existem diversas hipóteses de como foi o surgimento da vida. Uma dessas teorias seria a heterotrófica criada por Oparin, que defende que compostos orgânicos teriam sofrido reações em um ambiente aquoso que os levava a níveis crescentes de complexidade molecular, eventualmente formando agregados coloides, ou coacervados. Dentro dessa definição de abiogênese também temos a hipótese do “mundo de RNA” proposta por Walter Gilbert, segundo a qual o mundo atual com vida baseada principalmente no DNA e proteínas foi precedido por um mundo em que a vida era baseada em RNA. Essas duas teorias não são as únicas hipóteses que tentam explicar o surgimento da vida dentro desse contexto de abiogênese existindo muitas outras, como a panspermia (surgimento da vida fora da Terra) e a ecopoese.
Por último, o artigo do dr. England trata da termodinâmica, que é um assunto pouco conhecido mas utilizadas para invalidar de forma incorreta teorias científicas. Através de sua fórmula, Jeremy England demonstra que a emergência da vida é extremamente possível através de forças e leis naturais, tomando-se como base o fato do planeta Terra ser um sistema aberto. Não sendo o planeta um sistema fechado, a entropia pode diminuir. A luz solar (com baixa entropia) ilumina e esquenta a Terra (com alta entropia). Com esse fluxo de energia e as mudanças de entropia que o acompanham, o surgimento da vida se torna viável e a entropia diminui localmente na Terra.
Críticas infundadas
Sobre a citação “Você começa com um grupo aleatório de átomos; se você brilhar a luz sobre ele por muito tempo, não deve ser tão surpreendente que você obtenha uma planta”, não podemos realmente afirmar se partiu do pesquisador Jeremy England ou do colunista Paul Rosenberg. O que podemos afirmar é que não existe nada semelhante no artigo “Statistical physics of self-replication“ ou que leve a essa interpretação. Essa frase gerou diversos comentários provenientes de críticos e negacionistas, citando que o pesquisador estaria realizando uma defesa de uma nova versão da geração espontânea, que estaria indo contra a ciência, que dita que “a ordem e a complexidade não podem provir da desordem”, e que ele estaria ignorando o problema da informação biológica no surgimento do DNA e das primeiras formas de vida.
Sobre esses pontos, só podemos afirmar que seus críticos não leram realmente o artigo original e se basearam simplesmente na notícia de divulgação que, como dissemos, apresenta diversos erros e está permeada pela opinião pessoal do colunista não especialista. Conforme o artigo, seus resultados estariam estreitamente relacionados com os limites fixados na produção de entropia em termos de Teoria da Informação, como para o Princípio de Landauer, relacionado ao calor gerado pela exclusão de um bit de informação. England dedica a seção “Self-Replicating Polynucleotides” de seu artigo justamente para tratar da questão da informação biológica e o desenvolvimento do RNA e DNA baseada em sua pesquisa.
O artigo de Jeremy England é recheado de cálculos e dados técnicos, tornando-se uma leitura difícil para alguns, mas é um grande avanço teórico para o estudo da origem da vida. Seu maior sucesso é comprovar que a termodinâmica nunca foi um empecilho para o surgimento da vida na Terra. Agora basta esperarmos os próximos capítulos dessa história, sem apelarmos para falácias e falsas informações.
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Fabiano B. Menegidio é biólogo, bioinformata e mestrando em Biotecnologia; Henrique P. Rufo é biólogo