No século 18, a pena costumava ser aplicada diretamente no corpo do infrator: após o inquérito, ele podia ser decapitado, esquartejado, queimado com óleo quente, destroncado por cavalos ou algo do tipo. Tudo se dava em público para “servir de exemplo” e para o soberano “mostrar poder”.
Por causa da crueldade, essa prática foi extinta no início do século 19 em países como França, Inglaterra e Rússia. A partir de então, o sistema penal foi reformado e chegou ao formato atual mais usual: a pena recai sobre um direito do infrator (a liberdade); é cumprida em local fechado (ao público, agora, basta saber que o infrator está cumprindo pena); é aplicada pelo juiz (que, para se diferenciar do carrasco do suplício, dispõe de um exército técnico, com médicos, psiquiatras, psicólogos e seus laudos); e busca reeducar o infrator em vez de castigá-lo (é preciso, por exemplo, recuperá-lo para o trabalho, o sentido da vida no modelo capitalista).
O noticiário internacional mostra que, em algumas regiões do mundo, o suplício do século 18 ainda não foi completamente abolido. A grande diferença é que agora não se mata diante do pequeno grupo na praça, mas na frente do grande público, via televisão, internet e outros meios de comunicação: o “servir de exemplo”, com a intenção de medo que lhe é inerente, cruza fronteiras e atinge a massa!
O grupo extremista Estado Islâmico, com suas decapitações em vídeo e em cores, é exemplo notório da permanência do suplício em nossos tempos. Mas, para citar o caso de um poder legalmente constituído, também perdura na Indonésia: ao matar traficantes, “mostra-se poder” pela velha técnica do “fazer morrer” (o infrator) para “deixar viver” (o cidadão de bem).
O suplício do século 18 não era, em regra, uma pena arbitrária – como se via na Antiguidade e na Idade Média. Fazia parte do sistema legal. Em muitos casos, tinha um código que estabelecia o tipo de pena (se chibatadas, pedradas, ácido, corte dos tendões) de acordo com o crime. Era aplicado só nos crimes mais notórios. Na maioria das vezes levava em conta uma investigação – uma ideia de inquérito já se tinha na Idade Média, quando se estabeleceu que julgar era estabelecer a verdade de um crime; para tanto era preciso conhecer a infração, conhecer seu autor e ter conhecimento e aplicação da lei.
O corpo sob disciplina
O pensador francês Michel Foucault (1926-1984) observa que o suplício “se inseriu na prática judicial porque é revelador da verdade e agente do poder”. “Ele promove a articulação do escrito com o oral, do secreto com o público, do processo de inquérito com a operação de confissão; permite que o crime seja reproduzido e voltado contra o corpo visível do criminoso. Faz com que o crime, no mesmo horror, se manifeste e se anule. Faz também do corpo do condenado o local de aplicação da ‘vindita soberana’, o ponto sobre o qual se manifesta o poder, a ocasião de afirmar a dissimetria das forcas.”
Foucault observou que os reformadores do sistema penal do século 18 “viam no pior dos assassinos uma coisa que deve ser respeitada quando punimos: sua humanidade”. E isso, segundo o autor, fez prevalecer a recuperação do infrator ante o castigo do corpo. Em contrapartida, abriu caminho para a era das disciplinas. Trata-se de um conjunto de técnicas e procedimentos que busca produzir corpos politicamente dóceis e economicamente rentáveis, dentro e fora das prisões.
No sistema prisional, as disciplinas estão no controle dos espaços (cada um em sua cela, cada grupo de presos em uma galeria), do tempo (durmam às 22h, acordem às 5h, trabalhem até às 17h) e dos comportamentos (sejam obedientes, trabalhem com afinco, exercitem o corpo, tomem banho de sol). Fora dele, se apresentam, sobretudo, em estratégias políticas e econômicas que guiam comportamentos e, indiretamente, permitem o controle das operações do corpo. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia política define como se pode ter poder sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).”
Foucault lembra que muitos processos disciplinares existiam havia muito tempo nos conventos e nos exércitos, por exemplo. Mas, em sua perspectiva, as disciplinas se tornaram, no decorrer dos séculos 17 e 18, fórmulas gerais de dominação. “O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se, então, uma política das coerções, que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos.”
Referência bibliográfica
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões; tradução de Raquel Ramalhete. 41ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013
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Jeferson Bertolini é repórter e doutorando em Ciências Humanas