Repercutiu em colunas de jornais a capa da revista The Economist em que o Brasil aparece retratado por meio de uma sambista que se debate num lodaçal. Imagens geralmente inscrevem mais do que escrevem, o que implica ambiguidades de sentido e possíveis interpretações diferentes. The Economist é uma revista semanal que se anuncia como guia de “inteligência global” para “seis milhões de pensadores de classe mundial”. Mas não é preciso tanto para se concluir que o episódio da escola de samba subvencionada pelo ditador da Guiné Equatorial, ainda por cima através de canais escusos, inscreve-se na imagem da capa da revista como metonímia do Brasil.
Para um país que, bem ou mal, se empenha em sua boa representação no cenário internacional, a imagem é um importante instrumento conceitual. Disso não se dão bem conta os dirigentes atolados em suas próprias estatísticas como se a quantificação fosse reveladora da realidade que governada, quando não passa de um único nível de formalização da atualidade histórica. Por mais útil que seja à governança e a eventuais políticas públicas, a estatística (literalmente, significa “figura de Estado”) é como “o sapateiro que não deve ir além do sapato”, para se evocar um velho ditado latino. Nas palavras do francês B. Lussato, “querendo formalizar a vida, nós nos arriscamos a traduzir apenas o seu ruído e a sua sombra”.
Na verdade, a linguagem quantificadora e abstrata – a mesma que rege os ajustes fiscais como panaceia social – não apenas traduz, mas principalmente deixa na sombra aspectos importantes da imperfeição da dinâmica societária, característicos de todo e qualquer país, porém muito relevantes no momento que o Brasil atravessa. Que momento? Esse marcado pelo índice elevado de corrupção em todos os quadrantes e pelo índice rasteiro de autoestima pública. A corrupção pode ser medida por números, mas a autoestima transparece apenas em índices não-lógicos, em dados que estruturam fortemente a atividade humana, mas que não podem ser reduzidos a nenhuma estatística, ou seja, a nada que corresponda ao discurso dominante dos dirigentes.
A “sombra” social tem de ser apreendida, portanto, nos fragmentos de ações e de discursos, registrados pela mídia, porém geralmente sem as conexões devidas entre eles. Por exemplo, é sombria a labilidade da conscientização que se espera de atitudes ou declarações por parte de sujeitos supostos de responsabilidade política-jurídica-moral.
“Sonho da razão”
Aqui, beira o inacreditável o discurso público de um integrante da comissão de carnaval da escola vencedora e implícita na metonímia do The Economist: “O governo da Guiné não nos deu dinheiro, e sim apoio cultural. Eles nos cederam livros, fotos e outros materiais. É um povo (da Guiné) que sofreu muito e que, através do seu presidente, está construindo um país novo, que pensa em saúde, infraestrutura e saneamento básico. O povo é superfeliz com isso, então não importa o regime” (O Globo, 19/2/2015, grifo meu).
Ali, beira o inacreditável a ação do juiz flagrado ao volante do Porsche de Eike Batista depois de ter determinado a apreensão dos bens do milionário em apuros. Porsche em garagem privada, piano do outro emprestado ao vizinho, eis o grau zero da consciência de importância social da magistratura.
São dois fatos aparentemente distantes um do outro e, ainda por cima, aparentemente inferiores à magnitude dos eventos da Operação Lava Jato, com todos os fortes riscos que acarretam para o ambiente de negócios no país, expondo fundos de investimento, fundos de pensão, empresas do setor de óleo, gás e construção.
Que importância têm, portanto, aqueles fatos “miúdos” diante dos números avassaladores brandidos pela Operação Lava Jato?
A resposta pode ser buscada na ideia de “saturação”, mais de meio século atrás trabalhada por Pitirim Sorokin, um sociólogo criativo. Ele pensava a saturação como um esgotamento substancial de formas sociais. As pessoas e as coisas só existem enquanto inscritas numa forma, cujos limites dão à via a garantia de uma definição razoável. Mas ao ser confrontada por seu limite, toda e qualquer forma social vê-se no dilema de encontrar uma atitude alternativa, mais adequada à transformação da história ou da vida de todos os dias.
Nesta segunda década do terceiro milênio, multiplicam-se os exemplos de formas sociais saturadas que, no entanto, continuam de pé como o famoso personagem de Jorge Amado, o cadáver de Quincas Berro d’Água sustentado pelos companheiros de farra. São formas já peremptas no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, no ambiente de negócios, na imprensa e nas relações pessoais. Se no passado podia-se proclamar que “o sonho da razão produz monstros”, hoje se pode afiançar que a saturação das formas sociais produz mortos-vivos.
Pelos cabelos
Esta não é a afirmação do apocalipse ou do desencanto, mas uma chamada de atenção para persistência de equívocos que não transparecem no discurso economicista do governo. A pesquisa científica costuma mostrar aos pesquisadores o papel criativo de seus equívocos, o que às vezes sugere um novo sistema de medição ou um salto cognitivo que empurre o jogo para a frente.
A imagem da capa da Economist talvez esteja apontando, em sua ambiguidade, para algo além dos números da roubalheira que reúne coisas grandes e pequenas, simétricas e dissimétricas, na crise do pântano generalizado. Sair daí apenas com a lógica dos números é como o Barão de Münchhausen tentando escapar do pântano puxando pelos próprios cabelos.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro