Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quando a ética vira comédia

O forte dos tucanos nunca foi o senso de humor (ainda que seja necessária uma boa dose de senso de humor para especular sobre o que seria o forte dos tucanos), mas desta vez eles acertaram na mosca azul. Ao usarem as redes sociais para transformar em piada o bordão “a culpa é do FHC”, prestaram um relevante serviço público, por três bons motivos. Primeiro, ajudaram a descontrair um pouco o estado de espírito dos brasileiros, que anda sobrecarregado de azedume, ressentimento, ódio e intolerância – além de ira justificada, é claro. Depois, deram uma valiosa mãozinha para despedaçar um pouco mais a precaríssima fachada de ética que resta no discurso dos governistas mais obsessivos. Por fim, contribuíram para devolver um pouco de racionalidade ao debate político.

O leitor há de se lembrar de como essa história começou. Depois de longo mutismo, a presidente Dilma Rousseff declarou que a culpa pela corrupção de alta octanagem verificada na Petrobrás (em tempos recentes) deveria recair sobre o governo de Fernando Henrique Cardoso (de tempos pretéritos), que não “investigou” malfeitos na estatal ainda na década de 90. Foi no dia 20 de fevereiro de 2015. Eis a transcrição literal do que ela disse: “Se em 96, 97, tivessem investigado e tivessem, naquele momento, punido (ao pronunciar essa palavra, com ênfase, e subindo o tom, Dilma arregala os olhos e faz uma pausa), nós não teríamos o caso desse funcionário de Petrobrás que ficou durante mais de dez anos, mais de vinte, quase vinte anos, praticando atos de corrupção”.

Parece inconcebível, mas foi isso mesmo: uma notória piada pronta. Alguém poderia retorquir: “Que FHC, que nada! A culpa é toda de Tomé de Sousa!”. Outro talvez reclamasse uma CPI sobre desvios de moralidade pública do homem de Neandertal. Pelo sim, pelo não, as redes sociais enlouqueceram. Logo começaram a circular imagens anedóticas com as legendas “a culpa é do FHC” ou “foi o FHC”. Numa das melhores, um cachorro é fotografado no meio de uma cozinha inteiramente revirada, com potes no chão, comida espalhada, numa lambança daquelas, com uma folha de papel pendurada no pescoço: “Foi o FHC”. A brincadeira espalhou-se na velocidade da luz, incentivada por gente menos sisuda do PSDB. Há poucos dias o próprio ex-presidente posou sorrindo com uma nota de dois reais e um cartaz nas mãos: “Foi o FHC”.

Instalada a comédia, restam algumas perguntas a nos espreitar. O que houve com o discurso ético que tanto marcou o estilo retórico do PT (e de seus agregados mais hodiernos)? O que ruiu nesse cenário? Que máscaras caíram? Por que a gente brasileira passou a rir das palavras que a presidente da República pronuncia em tom de gravidade, entre silêncios temerosos e expressões faciais de tragédia? Por que essas falas têm o sabor de um quadro do Zorra Total?

Gargalos estruturais

A pregação não apenas ética, mas moralista, apelativamente moralista, foi um pilar da retórica do PT em seus (bons) tempos de oposição. Lembremos que um pouco depois dos anos 90, já no ano eleitoral de 2002, o partido veiculou na televisão um filme publicitário que soava como ameaça física. A câmera mostrava um bando de ratos marrons sobre um chão de brancura imaculada roendo a Bandeira do Brasil e depois a arrastando para dentro da toca. Ao final, um locutor, em off, declamava pausadamente: “Ou a gente acaba com eles, ou eles acabam com o Brasil. Xô, corrupção! Uma campanha do PT e do povo brasileiro”. Naquele tempo ninguém ria. Ao contrário, aquilo calava fundo na alma nacional. E hoje? O que aconteceria se o PT de hoje pusesse a mesma peça na TV? Quem levaria a sério?

A lembrança do moralismo feroz (embora justificado) daquelas épocas primevas nos ajuda a entender por que o discurso que já inspirou patriotismo e fibra cívica nos eleitores hoje desperta apenas o deboche. Como seria julgar o PT de 2015 nos termos do PT de 2002? Só rindo.

Em 2002 Lula foi eleito porque soube explorar uma percepção disseminada de que práticas inidôneas, para dizer o mínimo, aprisionavam o desenvolvimento do País. No imaginário nacional, Lula teria o condão de promover, e com rapidez, as investigações que não se faziam até 2002. O diagnóstico de que havia corrupção na década de 90 foi, portanto, o ponto de partida.

Aí vem a atual presidente e tenta transformar a alegada a ausência de punições da década de 90 em desculpas para o desmoronamento da Petrobrás em 2015. Que lógica existiria nessa postulação? Admitamos que tenha faltado transparência à Petrobrás na era FHC. Concordemos com a presidente nesse ponto. Mesmo assim, os deslizes dos anos 90 não podem agora ser anunciados como a grande descoberta da temporada, pela simples razão de que esses mesmos deslizes foram uma premissa central da campanha do PT em 2002. Logo, não são novidade alguma. Ao transubstanciar o velho ponto de partida no grandioso ponto de chegada, Dilma desconstrói a lógica e cria o efeito cômico típico das piadas. Impossível não rir.

Pensemos um pouco mais. Se as tais apurações e punições tivessem sido realizadas a contento ainda nos anos 90, o PT teria escassez de argumentos para disputar as eleições de 2002. Daí que, ao jogar, em 2015, a culpa no FHC de 1996, Dilma tenta escapulir da cronologia da experiência histórica e do encadeamento racional do debate político. Sem querer, encontra lugar no registro da comédia grosseira.

O chororô infantil do “foi ele que começou” não liquida a fatura do presente. No mais, o segundo mandato de FHC já foi avaliado e reprovado, por mais de uma vez. Em 2002, 2006, 2010 e 2014 os eleitores rejeitaram os tucanos e preferiram os petistas, dos quais esperaram e esperam ações que resolvam os gargalos estruturais da máquina pública (a corrupção entre eles), e não ações hilárias que transformam a ética em comédia. A propósito, um aviso aos hilariantes: rir não é o melhor remédio.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP