Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo, criação e gestão do presente

Os processos narrativos não são neutros ou desinteressados e, no caso das narrativas jornalísticas, podemos dizer que elas nada têm de isentas ou imparciais. Elas narram e descrevem em um processo que é também e, sobretudo, criativo. Em outras palavras, o jornalismo constrói verdades por meio de narrativas sobre a realidade. O mecanismo de criação no jornalismo é sutil, imperceptível a olhares condicionados às reportagens produzidas pelos veículos de massa.

Tudo o que lemos, ouvimos ou assistimos nesses veículos passa por um processo que seleciona, corta, edita e apresenta. O que chega para os receptores da informação jornalística não é uma representação. O que chega são leituras de outras leituras já feitas de acordo com padrões, que têm na técnica e no compromisso com a verdade seus fetiches. Não há representação, e sim, construção.

Além desses padrões técnicos, há outros, que chamam menos a atenção e estão ligados às condições objetivas da produção jornalística e às subjetividades de quem as produz. A tentativa de separar objetividade de subjetividade é uma impossibilidade, sendo que a primeira é evocada como que para garantir legitimidade ao discurso jornalismo.

A pesquisadora Gaye Tuchman [socióloga norte-americana, especializada em sociologia da cultura] acredita que a objetividade surgiu no jornalismo como um ritual estratégico, uma série de procedimentos utilizados pelos membros da comunidade jornalística a fim de assegurar credibilidade ao seu trabalho. Jornalistas supostamente detêm um conhecimento que permite identificar o que é notícia e, desta forma, produzir narrativas sobre os fatos de modo isento e objetivo.

Imparcialidade e compromisso com a verdade

Podemos considerar, desta forma, que não há como separar opinião de informação. Existem formas de narrar e de descrever e estas se apresentam no jornalismo de maneira a marcar os espaços entre opinativos e os supostamente isentos e comprometidos com a “verdade dos fatos”. Partindo-se da ideia de que não há descrição ou narração sem criação, é de se supor que a verdade também é produzida por um artifício discursivo que torna real aquilo que se descreve.

As narrativas sobre as manifestações contrárias ao governo da presidente Dilma Rousseff no dia 15 de março são férteis em possibilidades de análise de como a imprensa, ao narrar um fato e descrevê-lo, atribui a ele o peso da criação que pretende para aquele momento. Na edição do dia 16 de março do Jornal Nacional, por exemplo, o discurso da presidente foi recortado e apresentado de forma a facilitar a vida do cidadão que não pôde acompanhá-lo na íntegra.

Ao pontuar o que considera mais importante, a edição do Jornal Nacional ofereceu ao telespectador um mapa para compreender o que está acontecendo no país – após as manifestações do dia 13 e do dia 15 de março. Fazendo justiça ao papel de imparcial e comprometido com a verdade, o jornalismo que se pratica não diz o que pensar, mas diz sobre o que pensar. O mapa oferecido neste caso parece conduzir a um caminho em que fica fácil chegar a conclusões, ainda que elas não sejam as mesmas para todos que têm acesso ao material veiculado.

Esquecimentos, omissões e silêncios

O caminho proposto pelo mapa leva à fala do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Ele disse, em outro momento que não aquele em que se deu o discurso da presidente, que a corrupção não está no Poder Legislativo e, sim, no Poder Executivo. Investigado pela Operação Lava-Jato, Cunha expõe a presidente e seus ministros como os responsáveis por todos os problemas que o Brasil passa, que, na fala dele, parecem se resumir aos esquemas de corrupção.

Interessa-me neste momento, mais do que saber se ele tem razão, refletir sobre o que leva a imprensa a silenciar sobre as implicações de não associar, naquele momento, o fato de que Cunha preside um Legislativo em que há muitos investigados por corrupção. A imprensa perde a chance de oferecer neste mapa outro caminho que seria levar a sociedade a pensar sobre a forma como uma República democrática como o Brasil é conduzida.

Neste mapa oferecido após o discurso presidencial, a verdade contida na manifestação de Cunha soa como se o Congresso não tivesse qualquer participação nos fatos que se desenrolam no Brasil e ainda como se a presidente Dilma fosse uma ditadora que governa sozinha, sem interferências, composições, pressões ou participação do Legislativo. Soa como se ela fosse presidente de uma empresa familiar, na qual o PT é o grande patriarca, o detentor dos recursos e o único responsável pelas decisões de como, onde e de que maneira irá usá-los.

As declarações do presidente da Câmara foram publicadas no G1, no dia 16, às 16 horas, e reproduzidas à noite, logo após a edição do discurso da presidente ter sido apresentado. O jogo discursivo que se faz neste caso leva ainda à crença da descontinuidade dos governos, como se não houvesse passado. O jornalismo promove no espaço público – ainda que tenhamos que considerar que ele não é o único a produzir discursos nos espaços públicos – uma gestão do presente, que conta, à queima-roupa, uma história feita de esquecimentos, omissões e silêncios.

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Marcilene Forechi é jornalista e educadora