Prezado colegas jornalistas, sei que vou mexer em formigueiro, mas com o perdão antecipado de muitos colegas do Movimento Viva Santiago, em especial amigos que admiro e respeito como Fernando Molica e tantos outros, entro em um debate espinhoso para expor minhas discordâncias do muito que se tem falado a respeito da decisão da 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Com todo respeito à dor da família do cinegrafista Santiago Andrade, morto em fevereiro de 2014 enquanto trabalhava na cobertura dos protestos de rua, em especial à sua filha, Vanessa, e à viúva, dona Arlita – que pregou pela paz, no dia do velório do corpo do marido –, acho que devemos, como profissionais da imprensa, analisarmos fatos e não apelarmos para o emocional, tampouco nos deixar envolver pelo “spiritus-corpus” que muito criticamos em outras categorias.
Os dois jovens acusados devem sim ser responsabilizados pela morte do colega. Têm, portanto, que pagar por isso. Mas devem ser julgados dentro das leis e das regras que regem a sociedade. Estão há um ano presos, preventivamente. Como a lei determina que ninguém pague pela pena antes do julgamento encerrado, deduz-se que esta prisão ocorreu ou pelo risco deles fugirem ao cumprimento da lei, ou porque eles podem atrapalhar a investigação ou ainda por serem uma ameaça à sociedade.
Sabemos que ambos se entregaram à polícia. Um deles aguardou ser preso em um hotel, no interior do Brasil. Outro se apresentou. Logo, se afasta a possibilidade de que venham querer fugir. A condição social de ambos é mais um fator a tornar esta possibilidade mais difícil. Não podemos também acusá-los de atrapalhar a investigação, pois tudo o que tinha que ser investigado já o foi, contando com ampla cobertura da mídia, às vezes, até estardalhaço. Pensar que estes dois imbecis – sim, são uns imbecis – são ameaça à sociedade, é forçar uma barra imensa. Se já não o eram antes do encarceramento, imagina agora depois do que devem ter vivenciado dentro do nosso brilhante sistema penitenciário.
Análise isenta
Lembro, que quando criança, em um período de festa junina, alguém da minha família soltou um rojão e acabou se queimando. Menos mal, foi só uma queimadura e atingiu quem soltava o rojão. Mas isto mostra que acidentes ocorrem com fogos de artifícios. Como ocorrem acidentes com armas de fogo, com carros, ônibus e outros meios de locomoção. Até durante o trabalho. Alguns por imperícia, outros por negligência. Nenhum deles, no entanto, por dolo. Ou seja, não aconteceu com a intenção do autor de fazê-lo. Não houve premeditação.
Imaginar que estes dois imbecis, naquela noite de fevereiro de 2014, ao soltarem um rojão nas manifestações de rua, tinham a intenção de matar alguém, me perdoem, é uma forçada de barra enorme. Até concordo que quem brinca com fogo se queima ou pode queimar alguém – e isso, mesmo sendo imbecis, eles deveriam ter levado em conta. Daí a dizer que houve dolo, intenção, acho que é demais. E não sou apenas eu quem acho isso. Na verdade, me convenci desta tese após ouvir especialistas.
Em maio do ano passado, um grupo de juristas, intelectuais e 19 entidades civis organizaram, na famosa Faculdade de Direito da UFRJ, uma simulação de um júri com a presença do procurador de justiça aposentado Avelino Gomes Moreira Neto, que atuou no MP por 26 anos, e do jurista Nilo Batista, reconhecidamente um dos maiores criminalistas do Brasil. Todos, concluíram, usando as palavras do procurador, ter sido um “exagero responsabilizar os jovens por crime premeditado”.
Pena que a grande imprensa – exceção apenas para o site da revista Carta Capital, que publicou uma matéria que escrevi (link abaixo) – na sua ausência total de isenção, não deu cobertura ao fato ou, se divulgou, não o fez com nenhum destaque, pois comprometia a tese que jornais e jornalistas, me desculpem, fazendo valer o “spiritus-corpus”, defendem desde então: da intenção dos dois jovens de matarem um cinegrafista a serviço, apesar de ambos sequer o conhecerem e, provavelmente, nem repararem que ele estava ali trabalhando.
Caso os repórteres mantivessem a necessária curiosidade profissional, teriam aparecido neste júri simulado e ouvido o perito Ricardo Molina explicar que simulações com 12 rojões idênticos demonstraram que estes fogos de artifício, usados sem a vara de sustentação – como ocorreu na manifestação – tornam-se incontroláveis, sem direção, podendo percorrer distâncias que variam de sete a 333 metros, em um raio de 180 graus: “Mais ou menos resumindo, não se sabe absolutamente o que vai acontecer com cada um dos projeteis. Sem a vareta de direção ele é absolutamente errático”, concluiu Molina.
Isso embasou a tese de que os jovens, ainda que autores de uma atitude irresponsável, não poderiam ter intenção de atingir ninguém especificamente, pois os rojões eram incontroláveis. Uma tese explorada justamente pelo procurador Moreira Neto: “A explosão foi realizada de forma irregular; quem sabe, quem conhece, quem deseja atingir alguém não manipula (o rojão) de forma irregular”.
Também o jurista Nilo Batista, ao atuar como advogado de defesa dos jovens no júri simulado, advertiu que o próprio delegado Mauricio Luciano, da 17ª DP, ao pedir a prisão preventiva dos dois destacou que “neste lamentável episódio de violência, dois jovens, inicialmente não identificados, acendem o artefato que dispara sem rumo, vindo atingir (o cinegrafista) – ele escreveu isto, frisou Batista – dispara sem rumo”.
O simples fato de não terem domínio sobre a trajetória do rojão, tanto para Moreira Neto, como para Batista não permitiria ao delegado e ao Ministério Público partir para a tese do homicídio doloso (com intenção). Por esta tese, os jovens queriam atingir a polícia e acabaram ferindo mortalmente o jornalista.
É muito diferente do exemplo citado por alguns colegas de um jovem que toma um porre e depois sai dirigindo. Ao fazer isto, até por conta dos muitos exemplos que temos, além dos estudos científicos que já foram feitos e divulgados, o jovem sabe que estará colocando em risco a vida dele e, principalmente, de terceiros. Ocorre, que nem existiam estudos científicos – até aparecer o que foi apresentado por Molina – sobre a “direção errática” dos rojões, nem se ouve falar a todos os dias de acidentes como o que vitimou o colega Santiago.
A tese do crime culposo, sem intenção, como expliquei, foi defendida por um perito, um procurador de Justiça e um advogado, todos com diversos serviços prestados à Justiça e reconhecido conhecimento da doutrina. Alguns deles, como Batista e Molina, recorrentemente são procurados por jornalistas em busca de pareceres e opiniões para suas matérias do dia a dia.
Ou seja, a desclassificação do crime contra os quais todos reclamam, já era prevista há um ano, por juristas e especialistas isentos e desapaixonados ao analisarem o caso sem o spiritus-corpus que, me parece, alguns colegas estão deixando que supere a análise mais fria e isenta da questão antes de a noticiarem. Esta isenção não pode ser relaxada, por pior que seja conviver com a morte prematura, injustificável, babaca, eu diria, de um chefe de família, um cara honesto e bom cinegrafista, em pleno exercício da profissão.
Discordância crítica
Não quero, em momento algum, justificar esta morte e inocentar os imbecis que a provocaram por motivos bobos e sem medirem as consequências de seus atos. Acho que eles têm que pagar e que o exemplo da punição deles deve servir para que se evitem novos acontecimentos trágicos como este e que outras vítimas inocentes tenham a vida ceifada prematuramente, deixando famílias arrasadas e uma categoria profissional assustada no dia a dia do seu trabalho.
O que não se justifica é tentar fazer desse caso uma questão política. Na época, sem conseguir responder às reivindicações dos atos públicos que ocuparam as ruas, e pressionado pelo noticiário, o governo do Estado tentou e, de certa forma conseguiu, fazer deste caso um troféu, uma justificativa, como o próprio Nilo Batista falou
Julguem- os dois jovens imbecis, mas de acordo com o que fizeram e não com enquadramentos que fogem à razoabilidade só para se obter penas mais altas. Pois, quem pensa ao contrário, não está defendendo Justiça, mas justiçamento.
Lamento discordar da maioria dos colegas, mas acho que este caso precisa ser analisado com isenção. Isto me perdoe os que pensam diferente, me parece que está em falta, principalmente neste caso.
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Marcelo Auler é jornalista