Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando o moralismo afeta a democracia

Em Além do bem e do mal, Nietzsche afirma que não existem fenômenos morais, mas sim, a interpretação moral de fenômenos. O modo como a mídia hegemônica vem veiculando informações acerca da operação Lava Jato confere uma indiscreta atualidade a este aforismo, uma vez que, sem surpresas, vem a mesma insuflando a sociedade a se arvorar no monocórdico discurso de que esquemas de corrupção tais quais os que envolvem os contratos da Petrobras são problemas de ordem moral, ao invés de sistêmicos e estruturais.

Pudera. O entusiástico enfoque no envolvimento de parlamentares no recebimento de propina em detrimento da protagonista participação de tubarões da construção civil nacional e internacional deixa claro que é a régua do moralismo que vem norteando a linha editorial da grande mídia comercial. Após o aparecimento de nomes de congressistas nos esquemas, empreiteiras como a Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Engevix, OAS e Mendes Junior caíram, convenientemente, nos esquecidos pântanos das redações, que passaram a voltar suas forças quase exclusivamente para os corrompidos ao ignorarem que sua existência pressupõe, obviamente, a de seus corruptores.

Não são nada inocentes, e muito menos despremeditados, os esforços editoriais em safar a pele dos grandes conglomerados que há décadas vêm parasitando a maior estatal do país. Sua participação chave nos esquemas investigados pela operação Lava Jato denuncia algo que não é novo na tradição institucional brasileira: o influxo do poder econômico na política, financiando campanhas, arregimentando bancadas, abocanhando contratos e elegendo e des-elegendo governos conforme os ventos de suas lucrativas conveniências.

Ao embalar os escândalos no veludo do moralismo e vender essa perspectiva à sociedade, os grupos empresariais que gozam de contratos de concessões públicas de rádio e televisão atuam também em um verdadeiro exercício de sobrevivência, posto que são diretamente interessados na manutenção da ainda forte e promíscua tradição patrimonialista entre o público e o privado que viceja no Brasil desde os idos coloniais. Com efeito, acabam por ignorar as prescrições de todo o capítulo constitucional da Comunicação Social, até hoje desregulamentado, para, em um verdadeiro capitalismo sem riscos, se utilizar de um bem público – o sinal eletromagnético – para concretizar seus interesses privados e empresariais.

Apontar nomes e pedir cabeças

A franca timidez com que vem sendo tratado o gigantesco esquema de evasão fiscal do SwissLeaks (ou Suíçalão), onde mais de oito mil contas ilegais com o intuito de lavar dinheiro e sonegar tributos foram abertas por brasileiros na sucursal do banco HSBC da Suíça, denuncia outro mito que a mídia comercial costuma difundir no senso comum: o de que a iniciativa privada está a salvo da corrupção, restrita exclusivamente à esfera pública.

Foi, sobretudo, na esteira do moralismo despolitizado e na defesa de seus interesses privados que a Rede Globo – para citar o mais emblemático exemplo de império midiático-empresarial que temos – cobriu os atos no último domingo (15/3) com um entusiástico e assustador tom carnavalesco, com direito a sucessivas entradas ao vivo nas capitais e indisfarçável tom festivo por parte dos jornalistas que realizavam a cobertura.

A ideia implícita a abordagens dessa natureza é sempre a mesma: a de que para acabar com a corrupção basta mudar as peças do tabuleiro, mantendo intactas as regras do jogo. Não importa se a disfuncionalidade do sistema político, eleitoral e administrativo brasileiro restou escancarada com a quantidade de nomes das mais diversas matizes político-ideológicas e partidárias citados na lista de Janot. Importa menos ainda se ficou mais do que claro que nesse mesmo sistema há largas avenidas para que o poder econômico se infiltre sem qualquer constrangimento nas estruturas deliberativas e administrativas do Estado, ditando seus rumos em total desconformidade com o interesse público e com a soberania popular. O que realmente importa é apontar nomes e pedir cabeças, reafirmando – e safando – as verdadeiras origens do problema.

Poder econômico usurpa a democracia

Assim, ao ignorar os corruptores e incutir na sociedade a noção de que a corrupção é um problema moral cuja solução se resume à condenação de corruptos (livrando a barra dos corruptores), a mídia hegemônica protege e reafirma a cultura patrimonialista desse sistema que, no lastro de seus nada republicanos objetivos políticos e econômicos, há anos vem servindo de sustentação ao oligopólio de dinastias familiares, como a dos Saad e dos Marinho – estas duas últimas, não coincidentemente, com nomes envolvidos no escândalo do SwissLeaks.

Cortar os canais de influência do poder econômico na política institucional e partidária e democratizar os meios de comunicação, regulamentando o capítulo V da Constituição Federal e garantindo o livre fluxo plural e democrático da diversidade cultural e de opinião da sociedade civil organizada e não-organizada são pontos imprescindíveis se pretendemos, de fato, politizar o combate às verdadeiras raízes da corrupção, confrontando diretamente o farisaísmo moralista que serve de amparo a este secular patrimonialismo que, nas palavras de Rui Barbosa, transforma nossa república em res privada ao legitimar a usurpação da democracia pelo poder econômico.

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Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (Ipejuc), mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte