Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A reforma eleitoral e os candidatos-celebridade

As muitas propostas de reforma eleitoral têm ocupado grande espaço na mídia nos últimos meses. Insuflado pelos escândalos recentes de corrupção – especialmente o “petrolão”, que continua muito presente nos meios de comunicação – o tema está agendado de diversas formas, que vão desde a descrença com a sua utilidade até a fé cega dos que veem nessa reforma uma panaceia para todos os males da política brasileira. Mas, apesar das inúmeras abordagens sobre o assunto, algo está passando despercebido nessa discussão, até mesmo entre boa parte dos cientistas políticos: a influência da mídia na geração de algumas das disfunções nas eleições proporcionais para o legislativo.

Em suma, dois são os problemas principais diagnosticados nas eleições proporcionais brasileiras: as campanhas centradas nos candidatos e a hiperfragmentação partidária. Frutos das regras eleitorais, por certo. Mas também frutos de diversos outros fatores, dentre os quais a mídia e a sua incrível capacidade de construção de celebridades, que vez ou outra se aventuram na política. Voltaremos ao tema, porém antes é necessário explicar, ainda que brevemente, como funcionam as eleições proporcionais no Brasil.

No sistema de representação proporcional de lista aberta que adotamos desde 1945, os eleitores utilizam um único voto, dado a um candidato específico ou a uma legenda. Caso não houvesse coligações, as regras seriam de mais fácil entendimento. As cadeiras seriam alocadas primeiro aos partidos, de acordo com a soma de todos os votos dados na legenda ou nominalmente aos seus candidatos. Se um partido conquistasse votos suficientes para ocupar “n” cadeiras, por exemplo, então os “n” candidatos mais votados deste partido conquistam um lugar no parlamento. Em caso de sobras, um novo ordenamento seria feito, e os candidatos não eleitos pelo quociente teriam ainda a chance de serem escolhidos pela média. Assim, portanto, os eleitores definiriam diretamente a ordem dos candidatos nas listas partidárias e, de maneira indireta, quantos candidatos daquele partido teriam direito a um assento. O sistema é exatamente esse – mas ao invés de partidos isolados, existem as coligações entre partidos. Desse modo, é a soma de todos os votos dados nas legendas e nos candidatos integrantes das coligações que definirá a distribuição de cadeiras, no modelo que acabamos de descrever.

Os puxadores de voto

Na maioria das vezes, a capacidade de candidatos de conquistar votos é bastante limitada. Trata-se de uma atividade bastante dispendiosa, que exige investimentos vultosos que poucos têm capacidade de suportar. Mas existem aqueles que o jargão eleitoral batizou de “puxadores de votos”. São personalidades de grande apelo popular que conseguem transformar notoriedade em votos, em uma transmutação bem sucedida de capital social em capital político. Muitas vezes, para um candidato sem essa visibilidade, melhor do que entrar em rota de colisão com seus colegas de partido é embarcar em uma campanha que siga este campeão de votos.

Para o partido, também muito mais interessante do que estimular esta luta fraticida interna é adotar uma estratégia dupla. A primeira ação envolve o trabalho formiguinha de diversos candidatos que não têm a mínima chance de ganhar uma eleição, mas que podem juntos acumular pequenas votações que garantam um resultado agregado capaz de conquistar mais cadeiras. Este é um fenômeno bastante comum no Brasil, estimulado ainda mais pelas coligações – que muitas vezes são nada mais que a união de esforços de vários partidos e de centenas de candidatos de pouca expressão eleitoral. Outra frente de atuação dos partidos têm sido investir em puxadores de votos que, sozinhos, conseguem realizar o trabalho de centenas de candidatos acumulados, com uma economia significativa de recursos, na medida em que não são necessários grandes investimentos na campanha de um candidato que já é naturalmente conhecido do público. Aí entra a mídia: desde a redemocratização, é cada vez maior a presença de celebridades criadas pelos meios de comunicação entre os possíveis puxadores de votos. Nem sempre a estratégia é bem sucedida, e muitas são as celebridades que naufragam nas urnas. Já o oposto é cada vez mais explícito: boa parte dos campeões de votos, mesmo aqueles que se tornaram conhecidos por meio da política, têm na visibilidade dada pela mídia uma importante fonte de capital político.

A estratégia do puxador de votos na prática

Poderíamos utilizar vários exemplos, e a eleição do Deputado Tiririca em 2010, que deu o nome a esse fenômeno, é o mais comumente lembrado. Mas foi nas eleições de 2014 que o mais bem acabado exemplo de candidato-celebridade puxador de votos se deu, tornado realidade pela eficiente estratégia eleitoral do PRB em São Paulo. Nas eleições de 2010, o partido conseguiu eleger no estado apenas dois deputados federais, dentre 14 candidatos da legenda. Ao todo, o PRB angariou naquela eleição 274.320 votos nominais e 7.051 votos de legenda – quantidade somada inferior, portanto, aos 314.909 votos do quociente eleitoral. Mas uma ampla coligação, que envolveu também PT, PR, PC do B e PT do B permitiu que o partido conquistasse suas duas únicas cadeiras.

Já em 2014, a estratégia do partido foi completamente diferente. Um amplo trabalho de afiliação foi realizado, e o número de candidatos saltou para 96 – o maior número dentre todos os partidos que concorreram nessa eleição. Mas a principal vitória eleitoral veio com o lançamento da candidatura de Celso Russomano, que três anos antes havia saído do PP para ingressar no PRB. Trata-se de um político experiente e tarimbado, é verdade, que cumpre seu quinto mandato seguido de deputado federal. Mas é impossível negar que a sua ampla visibilidade midiática, gerada principalmente pela apresentação do quadro “Patrulha do Consumidor”, exibido no “Programa da Tarde” da Rede Record, é fonte de grande parte do seu capital político.

Com esta nova estratégia e uma grande esperança em um bom desempenho de Celso Russomano nas eleições, o partido optou por não se coligar a ninguém, lançando-se sozinho à corrida eleitoral. E a estratégia se mostrou correta: foram 2.231.543 votos nominais conquistados pelo partido, que somados aos seus 9.178 votos em legenda somaram 2.240.721 votos válidos – mais de 1,5 milhão deles destinados a Celso Russomano. Foi o suficiente para que o partido saltasse de dois para oito deputados eleitos em São Paulo, tornando-se assim o partido com a terceira maior representação do estado na Câmara Federal, atrás apenas do PSDB, com 14 deputados, e do PT, com dez. Desses oito deputados eleitos pelo PRB, quatro tiveram votação inferior a 16% do quociente eleitoral para Deputado Federal (299.952) votos, um número ínfimo, que só garantiu a eleição devido à estrondosa votação de Celso Russomano.

Eleitores desconhecem as regras eleitorais

Entrou nesta equação uma assimetria de informação entre os partidos e os eleitores, que faz com que esses últimos tenham uma visão sobre os mecanismos eleitorais muito distinta da realidade. Isso porque, enquanto os eleitores aprendem sobre política e formam opinião a partir de diversas fontes de informação, especialmente a mídia, os partidos têm uma visão mais orgânica, que inclui não apenas a forma como efetivamente se dão as eleições – com uma importância significativa da obtenção de votos nominais que se somam para o atingimento do quociente eleitoral –, como também dos elementos que costumam influenciar a decisão do voto pelos eleitores. Trocando em miúdos, os partidos entendem sobre os mecanismos das eleições e sobre as cabeças dos eleitores, e atuam assim de maneira estratégica para maximizar seus ganhos eleitorais.

O PRB foi pragmático e manejou muito bem uma campanha centrada em candidatos – ou melhor, em um único candidato. Os dados gerais das eleições de 2014 em São Paulo são ilustrativos desse personalismo: nas eleições para deputado federal, foram somados 2.189.267 votos de legenda, contra 19.072.393 votos nominais – uma relação de 1 para 8,71. Para partidos pequenos, esta relação pende ainda mais para os votos nominais, com uma ampliação gerada naquelas agremiações que contam com um ou mais puxadores de voto. O PRB, por exemplo, obteve míseros 9.178 votos em legenda, contra 2.231.543 votos nominais – uma relação de 1 para 243,14. Gera-se uma retroalimentação, em que uma parcela considerável do eleitorado vota de maneira personalizada, se importando muito mais com o candidato do que com o partido – em grande parte devido ao seu desconhecimento sobre o funcionamento das eleições proporcionais –, ao mesmo tempo em que partidos, especialmente os menores, se apoiam cada vez mais em uma estratégia que exalta personalidades de grande apelo popular, em detrimento de sua própria imagem como partido.

Uma proxy que nos ajuda a entender o comportamento do eleitor nas eleições em São Paulo em 2014 são as informações obtidas com o Google Trends, que mostram uma interessante síntese de como se deu a busca por algumas informações eleitorais selecionadas no estado no período que antecedeu as eleições de 2014.

Figura 1: Pesquisa no Google por termos selecionados, no estado de São Paulo, entre 15 de setembro de 27 de dezembro de 2014.

 

O que a figura 1 mostra é o que diversos cientistas políticos já têm alertado sobre o comportamento eleitoral brasileiro nas votações proporcionais: o sistema é bastante personalizado, e os eleitores têm dificuldade em compreender que votam na verdade em uma lista, e não apenas em candidatos específicos. Na informação trazida pelo Google Trends, há de se fazer algumas ressalvas – primeiro, refletem o comportamento de uma parcela da população que, muito provavelmente, têm um nível de cultura política acima da média da população. São pessoas com nível de escolarização mais alto, a maior parte delas com renda suficiente para acessar a internet de seus domicílios. Além disso, é formada por cidadãos que, de maneira ativa, buscaram informações sobre as eleições, o que demonstra ser um grupo com maior interesse pela corrida eleitoral.

Ainda com essas ressalvas, o padrão de pesquisas explicitado na figura 1 demonstra uma personalização bastante grande na busca por informação eleitoral, o que redunda em um comportamento bastante personalista na decisão do voto. A metodologia do Google não mostra valores absolutos ou percentuais. Simplesmente, dentre os termos pesquisados, atribui o valor 100 para o pico de pesquisa do termo mais popular no período – no caso a busca pelo termo “Russomano” na semana de 5 a 11 de outubro. A partir deste pico, os valores de popularidade de busca para os demais termos são apresentados como uma proporção em relação a esse valor máximo da amostra. Portanto, os dados nos mostram que, no período de 5 a 11 de outubro, para cada 100 pesquisas pelo termo “Russomano”, foram feitas 14 consultas pelo termo “PRB”, 12 para o termo “coligação” e um índice desprezível, que foi de zero ou muito próximo de zero, para Antonio Bulhões, deputado reeleito pelo PRB com a segunda maior votação da legenda – 137.939 votos, ou 9% da votação obtida por Celso Russomano.

Depois da eleição, a realidade política

Mas a avalanche de votos conquistada pelo PRB em São Paulo, e a força de ser um partido que, sem qualquer coligação, elegeu oito deputados federais pelo Estado, pouco valem na Câmara – e aí entra a hiperfragmentação, resultado direto da combinação entre as regras eleitorais brasileiras e o seu desconhecimento pela população. Se, nas eleições, o personalismo é a tendência, com um papel coadjuvante dos pequenos partidos, no Legislativo o peso da organização partidária é essencial para se conquistar qualquer influência no rumo dos trabalhos parlamentares. Gera-se, assim, uma situação esquizofrênica – máquinas que, de maneira isolada, se escoram em grandes personalidades e levam um número considerável de candidatos à vitória eleitoral, mostram no Congresso a sua real face – numerosas organizações de pouca expressão política que, isoladas, seriam trucidadas na intensa competição política, dominada pelos partidos de expressão nacional e de forte influência na vida política. Aos partidos pequenos – a maioria dos 28 que hoje têm representação na Câmara dos Deputados – restam três alternativas primordiais. A primeira é formarem blocos entre si, de maneira a coligarem suas “pequenezas” em algo um pouco maior, o suficiente para conseguirem, de maneira coordenada, alguma influência. O PRB de que tanto falamos, por exemplo, forma hoje bloco partidário com PTN, PMN, PRP, PSDC, PRTB, contando com uma bancada de 33 parlamentares cujo líder é, exatamente, o próprio Celso Russomano. Outra saída para esses partidos é gravitarem em torno das legendas maiores, apoiando-as aqui e ali neste ou naquele interesse para o qual os partidos-chave do Congresso necessitem da garantia de um “quórum extra de garantia”. Finalmente, em relação ao governo, estes partidos, por mais organizados que sejam – e raramente o são –, dificilmente têm peso suficiente para integrarem uma coalizão. São, portanto, usualmente insignificantes, sendo chamados apenas em uma política de varejo para comporem subcoalizões efêmeras em matérias específicas. Em todos os casos, contudo, existem graves problemas de coordenação, já que inexiste uma unidade partidária maior ou um vínculo político-ideológico que possa garantir que estas pequenas legendas atuem de forma harmônica.

Uma proposta de reforma

O desequilíbrio gerado pela mídia nas eleições, que confere vantagens significativas àqueles que contam com a visibilidade por ela conferida, é tema já previsto na legislação eleitoral atualmente em vigor. Em 1997, a lei passou a proibir que emissoras de rádio e televisão transmitissem, a partir de 1º de agosto do ano da eleição, programa apresentado ou comentado por candidato escolhido em convenção. Em 2006, nova lei alterou este preceito, antecipando esta proibição para a data da convenção [§ 1º do art. 45 da Lei nº 9.504, de 1997, com redação atual dada pela Lei nº 11.300, de 2006]. A proibição, contudo, foi capaz, se muito, apenas de minimizar aqueles efeitos de curtíssimo prazo – impediu somente a exposição desses candidatos apresentadores no período imediatamente anterior às eleições, especialmente durante a veiculação do horário eleitoral gratuito.

O fato é que atacar especificamente esta disfunção gerada pelas vantagens eleitorais daqueles que atuam na mídia é inócuo. Uma reforma eleitoral deve atingir questões mais estruturais e, especificamente no caso dos candidatos celebridade, a única saída possível é a adoção de regras que minimizem o caráter exacerbadamente personalista do voto nas eleições proporcionais. Algumas são as possibilidades – a mais radical delas, que muito provavelmente seria recebida com grande desconfiança pelos eleitores, é a adoção de listas fechadas de candidatos. O ideal seria adotar uma solução de meio termo, entre a lista aberta atualmente em vigor e a lista fechada, por exemplo, listas pré-ordenadas, porém não completamente rígidas, que permitissem ao eleitor reordená-las, parcialmente, de acordo com a sua vontade. A simples apresentação de listas pré-ordenadas, ainda que mutáveis, por certo geraria uma relação entre eleitor e candidatos muito diferente da que temos hoje. O cidadão teria, assim, muito mais conhecimento sobre o mecanismo proporcional adotado, o que o tornaria muito mais atento aos possíveis resultados do seu voto em um determinado partido.

Mas, seja qual for a solução adotada, o mais importante é que o sistema eleitoral seja de fácil compreensão pelo eleitor. Um maior conhecimento da população sobre as regras eleitorais aplicadas por certo a capacitaria a exercer o voto de maneira bem mais estratégica, conferindo assim maior vínculo entre a sua escolha eleitoral e o seu significado como opção por determinado projeto político.

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Cristiano Aguiar Lopes é jornalista, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e doutorando em Ciência Política pelo IESP/UERJ