Muita gente pensa que as palavras têm um sentido fixo e verdadeiro. Entre os defensores dessa tese, os mais sofisticados argumentam em nome de um sentido antigo, supostamente originário. Não deixa de estar implícita nessa tese uma generalização dela, segundo a qual antigamente tudo era melhor (do paraíso antes da queda às línguas antes de Babel).
Acontece que nunca houve Éden e que nada se sabe de antes de Babel. O que melhor se pode saber sobre as línguas decorre da observação cotidiana do que fazem com ela os falantes. E o que os falantes mais fazem com ela é puxá-la para seu lado.
Se se quer entender minimamente uma língua, talvez o melhor caminho seja olhá-la com olhos de sociólogo (em vez de consultar uma gramática ou um dicionário): e o que primeiro se vê é que ela não é (nenhuma delas) uniforme – assim como não o é nenhuma sociedade.
É mais comum que se observe a heterogeneidade de uma língua com base na diversidade de sotaques e de construções gramaticais (de que ‘nós vamos’ / ‘nós vai’ pode ser uma espécie de símbolo). Mas há tanta variedade de sentidos quanto de pronúncias ou de concordâncias verbais e nominais.
Dupla face
A disputa de sentidos se apresenta com duas caras. Uma delas consiste no fato de que uma parte da sociedade se recusa a empregar uma palavra, enquanto outra faz questão de empregá-la. Por exemplo, petistas não empregam a palavra ‘mensalão’ nem a palavra ‘petrolão’. A ombudsman da Folha de S. Paulo aprovou o emprego desta palavra pelo jornal, alegando que a sociedade a adotara. Ora, é fácil observar que só os adversários do governo (com razão ou não, isso é outro departamento) empregam a palavra; assim como só os adversários do governo de São Paulo empregam ‘trensalão’.
Observe políticos falando de Dilma Rousseff: se disserem ‘presidente’ em vez de ‘presidenta’, é certo que votarão contra suas propostas na próxima ocasião. E vice-versa. Muita gente pensa que se trata de gramáticas. Inocentes, não sabem de nada!
A outra forma da disputa consiste em tentar definir o sentido das palavras. Em coluna recente, mencionei um artigo de jornal de Marcos Troyjo, que propunha uma definição de ‘conservador’ supostamente objetiva (ledo engano!).
Na Folha de S. Paulo de 22/03/2015 (C5), há um exemplo que parece menor, mas que, talvez por isso mesmo, é um argumento forte em favor dessa tese. O título da pequena matéria é ‘Paulistanos adotam apelido de ‘coxinha’ com tom político’ (um horror estilístico, mas isso não vem ao caso). Para que o leitor veja o quanto a questão do sentido importa, vale a pena chamar atenção para a afirmação algo paradoxal de que o termo não consta no dicionário, mas pode designar ‘massa frita com recheio de frango desfiado’.
(Dicionários têm políticas próprias para registrar ou não flexões e derivações. O Houaiss eletrônico, por exemplo, não registra ‘coxinha’, mas registra ‘coxa’ e registra ‘-inha’, com a regra de seu emprego). Mas no Google se pode ler tanto sobre o salgado quanto sobre um sentido político ou sociológico da palavra, que designa grupos específicos. Por exemplo, no site Significados.com.br, pode-se ler que: Coxinha é um termo pejorativo usado na gíria e que serve para descrever uma pessoa ”certinha”, ”arrumadinha”. Tendo a sua origem em São Paulo, a palavra “coxinha” quase sempre tem um sentido depreciativo e indica um indivíduo conservador, que é politicamente correto e que se preocupa em adotar comportamentos que são aceites pela maioria das pessoas.
Não se trata, evidentemente, de um ‘sentido verdadeiro’. É um sentido marcado, talvez pejorativo (depende de como se avalia o conservadorismo, “certinho” e “arrumadinho”).
Mas meu tópico é a disputa de sentidos e seu registro em matéria de jornal, que, basicamente, noticia uma disputa, na verdade, uma tentativa de reverter o sentido pejorativo de ‘coxinha’.
Um jovem citado na matéria, por exemplo, declara que, para ele, a palavra significa “classe média trabalhadora, que não aceita mais essa roubalheira”. Nas redes sociais, informa a mesma matéria, circulam definições como “propenso ao trabalho e ao estudo” e “aquele que dá valor ao mérito”.
Todos os dias se registram sintomas dessa disputa discursiva. Pode parecer pouca coisa, mas é essa disputa que vai definir vencedores e perdedores nas outras disputas, seja por salário, seja por renda, seja por vagas nas universidades ou direito de frequentar shoppings e aeroportos.
Sempre que alguém reivindica o emprego das palavras em seu sentido verdadeiro, o leitor pode apostar: ele acha que o sentido verdadeiro é aquele que ele mesmo lhe atribui.
Muitos pensam que, assim, nunca nos entenderemos. Mas é óbvio que não. Se nos entendêssemos, por que existiria a história de Babel?
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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas