Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A arca do tesouro do Banco Mundial

Na tórrida manhã de Miami, o avião Piper Navajo PA-31 decolou e rapidamente sumiu na direção sul, rumo ao Caribe. Quando sobrevoava o Haiti, suas câmeras começaram a clicar. Por trás desta missão de reconhecimento, por incrível que pareça, estava uma instituição financeira: o Banco Mundial, símbolo da globalização e, para muitos, o orgulho das nações ricas.

Mas a operação dificilmente se poderia classificar como clandestina. Pelo contrário: as fotografias aéreas tiradas naquela manhã de janeiro de 2010 – pouco depois que um poderoso terremoto devastou grande parte de Porto Príncipe – logo iriam para a internet para que todos as pudessem ver, assim como um convite para que os especialistas do Banco Mundial fossem assessorados com dados sobre o prejuízo e pudessem avaliar como ajudar o Haiti. O apelo assinalava uma mudança radical por parte do Banco Mundial que, como seu irmão, o Fundo Monetário Internacional, já foi chamado de tudo, de arrogante a inepto. O Banco Mundial quer que o mundo saiba que, finalmente, ele está se abrindo, muito embora o faça lentamente e, às vezes, de forma dolorosa.

O FMI ganhou as manchetes, nos últimos tempos, tornando-se onipresente nos tabloides depois que seu líder, Dominique Strauss-Kahn, foi acusado de assédio sexual a uma camareira num hotel de Manhattan. Essa alegação começou a se desemaranhar na sexta-feira (1/7), quando os próprios promotores questionaram a credibilidade da vítima. Strauss-Kahn, entretanto, não retornará a seu emprego; semana passada, o Fundo nomeou Christine Lagarde, ministra das Finanças francesa, como sua próxima líder. Porém, enquanto o FMI está às voltas com o escândalo e a crise da dívida que abala a Europa, as autoridades na sede do Banco Mundial vêm confrontando algumas questões existenciais, inclusive a maior delas: o que estamos, precisamente, fazendo aqui?

Prenúncio da revolução silenciosa

O papel tradicional do Banco Mundial tem sido o de financiar projetos específicos que promovam o desenvolvimento econômico, enquanto a meta do FMI é salvaguardar o sistema monetário global. Mas muita gente, em especial nos países em desenvolvimento, questiona há muito tempo se as receitas econômicas que estas duas pomposas instituições impõem a partir de Washington – fundamentalmente, liberalizar, privatizar e desregulamentar – serviram para alguma coisa além de aumentar o interesse de nações ricas, como os Estados Unidos. E o fato do FMI defender agora um pacote de medidas de austeridade profundamente impopular para a Grécia, onde continuavam os protestos de rua na semana passada, apenas acirra a questão.

Pode parecer surpreendente, portanto, que o presidente do Banco Mundial, Robert B. Zoellick, um diplomata de carreira e membro da elite de política externa do Partido Republicano, defenda que a moeda mais valorosa do Banco Mundial não é seu dinheiro – é sua informação.

Criado em 1944 e quase sempre dirigido por um norte-americano, o Banco Mundial ajudou, inicialmente, a financiar a reconstrução da Europa, devastada pela guerra. Desde então, ampliou para muitos trilhões seus empréstimos para vários tipos de projetos – desde instituições como escolas e hospitais, ou infraestrutura, como estradas, a projetos controversos e inamistosos do ponto de vista ambiental, como usinas de energia gerada a carvão e hidrelétricas. Ao longo do caminho, assim como o FMI, o Banco Mundial brincou com economias inteiras, às vezes com resultados desastrosos.

No entanto, os voos sobre o Haiti – que custam ao Banco Mundial tanto quanto um relatório – foram o prenúncio da revolução silenciosa que agora se apoderou dessa instituição reservada. Mais de 600 engenheiros, em 21 países, analisaram a informação coletada sobre o Haiti e suas conclusões – basicamente, o que reconstruir e onde – foram adotadas pelo governo haitiano, por organizações de ajuda humanitária, por empresas etc. “Parecia um caubói de faroeste, em termos dos limites do projeto e do que tínhamos condições de fazer”, diz Stuart P. D. Gill, um cosmólogo em informática e coordenador do projeto do banco para reduzir desastres e para laboratórios para recuperação.

“As receitas foram numa única direção”

Há muito tempo considerado uma torre de marfim sem janelas, o Banco Mundial está abrindo seu imenso baú de informações. É verdade que o banco ainda empresta aproximadamente 170 bilhões de dólares por ano. Mas vem competindo, cada vez mais, por influência e poder com Wall Street, com governos nacionais e bancos de desenvolvimento regionais, menores, que têm tanto ou mais dinheiro a oferecer. Deixou de ser o único jogo em questão.

E assim Robert Zoellick, de 57 anos, vem exercendo conhecimento – muito conhecimento. Há mais de um ano, o banco vem divulgando seus relatórios de informação selecionada, dando atualmente acesso público a mais de 7.000 documentos que até então era apenas acessíveis a cerca de 140 mil assinantes – em sua maioria, governos e pesquisadores, que pagavam para acessá-los. Esses dossiês de documentos contêm todo tipo de informação sobre o mundo em desenvolvimento, desde estatísticas econômicas de rotina – Produto Interno Bruto, preço da inflação ao consumidor etc. – ou de cunho misterioso, como, por exemplo, quantas mulheres amamentam seus filhos na zona rural do Peru.

Trata-se de um tesouro como nenhum outro no mundo e, como já foi demonstrado, de enorme valor. Isto porque, seja por sua precisão ou parcialidade, essa informação define, fundamentalmente, a realidade de bilhões de pessoas e é utilizada na adoção de políticas e decisões que têm enorme impacto sobre suas vidas. Robert Zoellick diz que essa abertura recentemente encontrada é parte do empurrão para alcançar a competitividade, tanto internamente quanto no exterior, na medida em que tenta reduzir a pobreza e promove o desenvolvimento econômico.

Resumindo, o Banco Mundial, desde há muito um sinônimo do elitismo de Washington, começa a “democratizar a economia do desenvolvimento”, para usar uma frase de Zoellick, que dirige um movimento que muita gente de dentro do banco considera um ataque a seu poder e prestígio. “Não temos um monopólio das respostas”, disse Zoellick num discurso na Universidade de Georgetown no outono passado. “Por muito tempo, as receitas foram dirigidas numa única direção.”

“A burocracia arrogante”

Robert Zoellick cruza as pernas em seu sofá, no escritório da sede do Banco Mundial, no 12º andar. Quando a visitante pergunta onde pode se sentar, ele bate com a mão na perna e diz: “Em qualquer lugar, menos aqui.” Então, sorri, toca a almofada a seu lado e acrescenta: “Ou aqui” – e então aponta a porta ao lado, da sede do FMI. É uma piada que se refere a Strauss-Kahn e às turbulências legais em Nova York. Deixando de lado as graças, Zoellick fala com a solenidade de um embaixador – o que nada tem de surpreendente, uma vez que passou a maior parte de sua carreira como diplomata dos Estados Unidos.

Robert Zoellick foi nomeado para o cargo em julho de 2007, substituindo Paul D. Wolfowitz, que renunciou após uma série de controvérsias que terminaram num escândalo sobre sua relação com uma funcionária. Advogado, Zoellick exerceu a profissão em Washington, principalmente em círculos do Partido Republicano. Na década de 1980, no Departamento de Finanças, e depois na Casa Branca, ele assessorou o presidente George W. Bush. Na década de 1990, trabalhou na Fannie Mae, empresa gigante dos negócios de hipotecas.

Posteriormente, como representante do comércio dos Estados Unidos para o presidente George W. Bush, defendeu o livre comércio. Ainda mais tarde, no Departamento de Estado, sob Condoleezza Rice, defendeu a guerra com o Iraque e foi considerado o mentor da política do governo com a China. Então, deu uma pausa e foi diretor administrativo da Goldman Sachs. Atualmente, o que ele faz é dizer aos 10 mil funcionários do Banco Mundial que não mais considera que a instituição seja o centro do universo do desenvolvimento. “Ao contrário de uma burocracia, às vezes arrogante, em Washington, vimos fazendo as coisas abertamente e acessíveis ao público”, diz ele. “Isso significa melhor desempenho, um sistema mais aberto, significa que as pessoas tenham uma opinião diferente sobre o Banco Mundial.”

“A norma é esconder informações”

Para alguns funcionários, isso representa uma declaração de guerra a uma cultura de décadas, uma guerra que começou quando Zoellick chegou e instituiu uma reunião dos executivos seniores às 8h30 – “Foi um choque, para alguns deles”, relembra. “Não foi sangrento, mas também não foi fácil”, diz Sanjay Pradhan, vice-presidente do Instituto do Banco Mundial, repartição que assessora e aconselha governos e que Zoellick designou como sua principal fonte na luta por mais transparência.

Ele não é o primeiro presidente do Banco Mundial a lutar pelo equilíbrio entre práticas e princípios. Afinal, o banco adotou uma política de informação aberta há quatro décadas. James D. Wolfensohn, que dirigiu o banco de 1995 a 2005 e era adorado pelos funcionários, chamava o Instituto o “Banco do Conhecimento” e, durante seu mandato, gastou 280 milhões de dólares para melhorar a forma de partilhar informação com os funcionários, com os governos-clientes e com as organizações. Pelo que se diz, o Banco Mundial não conseguiu implantar esse conceito de abertura em sua própria cultura, apesar de aperfeiçoamentos significativos em tecnologia e nas ferramentas para partilhar informação. “A administração de alto escalão pode anunciar estratégias e reorganizações profundas, mas tem que confiar no escalão administrativo intermediário do banco para executá-las”, diz David Ian Shaman, ex-diretor do Banco Mundial. “O escalão intermediário é composto por feudos que são preservados pela manutenção do status quo e, por isso, se sentem pouco incentivados a adotar mudanças.”

Num livro intitulado The World Bank Unveiled: Inside the Revolutionary Struggle for Transparency, Shaman relata o dia-a-dia de sua luta, na era Wofensohn, para transmitir pela internet coisas como debates sobre política interna. A preocupação de alguns funcionários era que esse serviço da internet, chamado B-Span, abrisse o banco a críticas e reduzisse sua autoridade. “A norma cultural do banco é esconder informações e, quando divulga informação, ou ela é perfeita ou é coreografada para entrega a uma audiência específica”, diz Shaman.

“Para a instituição, é melhor que sejam abertas”

Em 2004, por exemplo, o B-Span começou por ser barrado de gravar um discurso feito por um economista desenvolvimentista, Hernando de Soto, durante um evento realizado para inaugurar uma nova política no acesso à informação. “Disseram-me que seria muito controvertido”, relembra Shaman. O vídeo acabou sendo feito mas, assim como o próprio B-Span, foi silenciosamente armazenado quando ele saiu do banco, no ano seguinte.

David Roodman, diretor de alto escalão do Center for Global Development, também teve suas brigas com o Banco Mundial. Porém, como pesquisador, ele diz que compreende a relutância entre as autoridades do Banco Mundial em escancarar as portas. Os pesquisadores do banco dão duro para coletar informações. Se elas aparecem na internet, podem perder a oportunidade de utilizá-las em suas dissertações de pesquisa, perdendo dinheiro e prestígio. “É a base crucial do seu trabalho. Se você compartilha o que fez e alguém encontrar erros, como é que você fica?”, diz Roodman.

Fora do Banco Mundial, as pessoas esperam avidamente pelas informações. Seu relatório mais recente, que abrange de estatísticas econômicas a números sobre minas terrestres, atraiu mais de 4,5 milhões de visitas únicas. A realidade é que mais pessoas visitam sua página na internet procurando informações do que qualquer outra coisa. “Fico perplexo com o número de pessoas que, aparentemente, estão apenas esperando que o acesso à nossa informação seja gratuito”, diz Shaida Badiee, diretor do grupo de desenvolvimento econômico de informações do banco. “Não tinha noção de como esta coisa seria importante.”

Robert Zoellick diz que compreende as preocupações de seus funcionários, mas que a análise e pesquisa abertas ao escrutínio público levarão a diminuir os erros. “Tenho certeza que, ao longo dos anos, haverá histórias ruins que resultarão disto – e, caso você faça parte dessas histórias ruins, provavelmente será algo do que você não vai gostar”, diz ele. “Mas minha opinião é que, para a instituição e para sua saúde, é muito melhor que sejam abertas.”

Incentivar os parceiros a criarem links

Num dia da primavera passada, no pátio ensolarado do banco, a equipe de Robert Zoellick repartia prêmios para uma competição chamada Apps for Development. Fabricantes de software do mundo inteiro haviam apresentado suas candidaturas com base nas informações do banco. O pátio é a agora do banco, referência para espetáculos e apresentações e, muitas vezes, as pessoas vestem roupas típicas para eventos importantes.

Mas naquele dia, as pessoas mais exóticas eram fabricantes jovens, como Frank van Cappelle, um holandês que faz o doutorado na Faculdade de Educação de Melbourne, na Austrália. O aplicativo que ele desenvolveu StatPlanet, permite às pessoas explorarem mais de 3.000 indicadores econômicos do Banco Mundial, com mapas interativos e gráficos. Ganhou o primeiro prêmio, de 15 mil dólares.

Um dos finalistas foi um aplicativo para ajudar gestantes a usarem seus celulares para localizar informação do Banco Mundial sobre saúde na gravidez em seus países e em suas línguas. Outro finalista foi um jogo projetado para desenvolver a consciência do desmatamento. Frank van Cappelle diz que a competição incentivou as pessoas a compreenderem o sentido da informação do banco. “Existe muita informação que fica trancada em bancos de dados”, diz ele. “Acho que será necessário o uso deste aplicativo – e de outros que também foram desenvolvidos – para destrancar essa prisão.”

Em parte, o Banco Mundial promoveu a competição para lembrar a seus funcionários que as velhas barreiras estavam vindo abaixo. “Poderíamos ter tido uma centena de pessoas aqui sentadas, por um ano, e nunca iria aparecer uma porção destas coisas”, diz Robert Zoellick. O banco, segundo ele, está ampliando, essencialmente, o círculo de pessoas com quem pode fazer tempestade cerebral.

Com modelos de fonte aberta e de fonte-multidão já criados, o banco se dirige agora para mash-ups [tipo de áudio livre, que capta emissões de fontes distintas]. Um novo programa, Mapping for Results, oferece mapas interativos que localizam quase 3.000 projetos do banco em mais de 16 mil diferentes lugares pelo mundo afora. Links abrem páginas com informação sobre cada projeto e os usuários podem acrescentar dados que mostrem, por exemplo, onde a mortalidade infantil é mais elevada para avaliar se o trabalho do banco nessas áreas corresponde às necessidades.

O programa é delicado, pois envolve a divulgação de informação proveniente de governos-clientes e de outros, mas espera-se que ele incentive esses parceiros a criarem links sobre suas próprias informações sobre desenvolvimento econômico e social, vinculando-as ao site, ou tornando-se acessíveis.

“Você não pode controlar”

O governo sueco, grande apoiador de projetos de desenvolvimento, acompanhou a ideia com um novo protótipo com informações sobre onde gasta suas verbas de ajuda e o impacto que elas causam. “A meta é alcançar a maior redução da pobreza possível”, disse o governo sueco este ano ao anunciar o esforço. “Para alcançar essa meta, a cooperação para o desenvolvimento deve estar aberta à transparência e às ideias de outros.”

Na semana que vem, também o Quênia abrirá uma página na internet dando acesso a informações que, até agora, apenas existiam em livros, nas estantes de vários ministérios. Os fabricantes de softwares já o estão ajustando – procurando padrões, tais como se existe uma correlação entre os gastos do governo em escolas e os resultados dos exames dos alunos, a alfabetização e a matrícula. “O Banco Mundial tornou a coisa mais fácil, com a informação aberta”, diz Bitange Ndemo, secretário para a Informação do Quênia. Uma divulgação mais ampla desse tipo de informação permitirá a elaboração de políticas mais “científicas”, permitirá diminuir a corrupção no Quênia e envolver mais pessoas no governo, possibilitando-lhes o conhecimento necessário para enfrentar seus líderes políticos, diz ele. Respondendo a uma pergunta sobre a disseminação de informações do governo, Ndemo disse que a transparência era inevitável.

A informação tem valor, diz ele, e as pessoas darão um jeito para as receberem. “Assim como os celulares e a internet, isto é uma coisa que você não pode controlar.”

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[Stephanie Strom é jornalista do New York Times]