Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A armadilha inflacionária

O tom, para um jornal de perfil sóbrio como o Valor Econômico, chegava a soar rude: ‘A crítica aos juros é a mais fácil, superficial e oportunista do debate brasileiro’, escreveu Cristiano Romero, editor-executivo, em sua coluna de 9/3. O título era ‘A coalizão inflacionária’: centrais sindicais, entidades patronais, ala ‘desenvolvimentista’ do governo que ‘se juntam para reclamar da taxa de juros’.


Na conclusão, constatava: ‘[…] o país padece de uma memória inflacionária. Com o fim da inflação crônica, a partir de meados de 1994, deveria prevalecer a cultura do nominalismo, mas no país só se fala em juros reais, salário real, etc. É como se a inflação fosse o alicerce irremovível da nação, um mal que não deve nem precisa ser debelado’.


O Observatório da Imprensa quis saber de Romero se ele acha que a imprensa pode desempenhar um papel de esclarecimento insubmisso à narrativa que subestima a ameaça inflacionária, frequentemente em defesa de interesses corporativos. A resposta foi que sim, pode, ou melhor, deveria fazer isso.


Eis as partes principais da entrevista.


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Mostrar a regra e suas implicações


‘Quando o governo Lula negociou com as centrais sindicais a regra de correção do salário mínimo, a imprensa tinha a obrigação, na minha opinião, de mostrar os impactos dela na economia. Você tem que cobrir o fato, mostrar qual é a regra, mas mostrar também que essa regra traz um mecanismo de reindexação da economia que pode ter efeitos danosos sobre a inflação. É obrigação da imprensa. No ano passado, a inflação medida pelo IPCA, índice usado no regime de metas da inflação, chegou a 5,9%. Quando se examina esse índice, vê-se que os preços dos serviços subiram 7,5%. Acima, portanto, da inflação média. E os preços de alimentos e bebidas subiram mais de 10%. Houve um choque de preços nessa área que ajudou a complicar o quadro inflacionário. Dois terços do aumento dos preços dos serviços no ano passado ocorreu por causa do aumento do salário mínimo, que já tinha sido um aumento elevado, porque pegou a inflação de 2009 mais o crescimento do PIB de 2008, de quase 6%.’


Preços dos serviços


‘Não temos como fugir desse fato: um aumento do salário mínimo muito acima da inflação já estabelece uma espécie de piso para a inflação do ano seguinte, porque pressiona os preços dos serviços, um setor da economia onde não há concorrência. Não há como importar cabeleireiro, restaurante, e esses preços são muito movidos pela pressão da demanda.’


Uma conta salgada


‘A questão não é controlar a evolução do salário mínimo. É discutir uma política de recuperação do salário mínimo dentro de um contexto maior, que envolva a questão da Previdência. Quando se aumenta o salário mínimo, há impacto direto nas contas das Previdência Social – 18 milhões de aposentados recebem o salário mínimo −, além da questão inflacionária. A política de recuperação do salário mínimo tem que levar em conta a questão fiscal, o financiamento do Estado brasileiro. Afinal, temos um déficit na Previdência Social superior a R$ 40 bilhões que, somado ao déficit das aposentadorias do serviço público, chega a quase R$ 100 bilhões por ano. Uma conta salgada, que tem efeito inflacionário. A imprensa deveria mostrar que esses dois itens estão entre as razões que fazem o Estado brasileiro ir ao mercado pedir dinheiro emprestado para cobrir seu déficit. Ele emite uma dívida cara, referenciada à taxa Selic. Isso, não vamos nos iludir, tem impacto inflacionário.’


Privilégios banalizados


‘O que falta na imprensa, de modo geral, na minha avaliação, é mostrar todos esses dados para que as pessoas se informem. E não deixar que essas coisas se banalizem mais ainda. Já se banalizaram de tal maneira que a imprensa não dá mais atenção a elas. Por exemplo: faz algum sentido, de qualquer ponto de vista, que procuradores da República e juízes tenham dois meses de férias por ano, pagos pela população, pelos contribuintes? Alguma outra categoria profissional tem direito a esse privilégio? Qual o custo disso para o país? Alguém dirá: o custo é pequeno, considerado todo o tamanho da folha. Mas é com esses pequenos absurdos, essas coisas inexplicáveis, que se vai criando o monstro do déficit público.’


O BC e os juros


‘O Brasil é um país que, depois de 17 anos de processo de estabilização da economia, ainda tem um déficit público elevado. Alguém dirá: mas ele é menor do que o americano. E daí? O déficit público americano, europeu, é elevado, mas a taxa de juros lá é baixa. Novamente, alguém dirá: mas a taxa de juros no Brasil é elevada porque o Brasil pratica uma política conservadora. Isso é outra coisa que me incomoda muito no debate econômico. Achar que o problema do Brasil é uma taxa de juros mal calibrada pelo Banco Central. Isso é absurdo. No passado recente, dizia-se o seguinte: o BC estabelece taxas de juros muito elevadas porque é integrado por pessoas do mercado que querem favorecer a banca privada. O argumento é desmoralizado porque desde 2008, mais ou menos, a diretoria do BC é dominada por funcionários de carreira, e os juros continuam elevados.’


Não é uma conspiração


‘O país se recusa a discutir, e eu acho que a imprensa deveria colocar esse debate na mesa e cobrá-lo das autoridades, quais são as razões que o levam a ter uma taxa de juros tão elevada, anômala. Ela não é uma taxa de juros normal, certamente, mas não é porque exista um bando de malvados lá no BC conspirando contra o país. Os dados do BC indicam que existe uma correlação muito forte entre a taxa Selic, descontada a inflação, e a demanda. Quando se examina o histórico, elas caminham juntas. A taxa de juros não é um problema em si. Ela é o resultado de uma série de deficiências que a economia brasileira ainda apresenta.’


‘Neoliberalismo’, o anátema


‘Quando se quer interditar um debate, fala-se: ‘Isso é neoliberalismo’. Usa-se a acusação quando não se quer discutir certas coisas. É muito típico dos governos. O governo, muitas vezes por conveniência política, não quer discutir questões como a aposentadoria integral do funcionalismo, as férias dobradas de juízes e procuradores, a questão do imposto sindical. Como é que o Brasil, setenta anos depois da era Vargas, ainda exerce esse controle do sindicalismo via imposto sindical? E ainda tem o Sistema S financiando entidades classistas, como CNI e Fiesp. Não tenho nada contra as entidades. Só acho que elas deveriam sobreviver com seus próprios recursos. Se as empresas têm interesse em treinar mão de obra – aliás, essa é uma obrigação delas também, não só do Estado −, as entidades deveriam cobrar contribuições de seus associados e financiar diretamente essas atividades. Mas não. Existe uma contribuição parafiscal recolhida pelo Estado e repassada a elas para fazerem isso.’


Servidor não precisa poupar


‘Outra coisa que a imprensa deveria mostrar: o fato de o funcionalismo público federal ter aposentadoria integral paga pelo Tesouro, por todos nós, é um dos desestímulos à poupança doméstica. O funcionário público não precisa poupar. Sabe que vai ter aposentadoria integral, que tem estabilidade, outra coisa que deveria ser discutida. Eu me sinto muito à vontade para falar dessas questões, porque sou filho de funcionário público, casado com funcionária pública, irmão de funcionários públicos. Acho que a sobrevivência e a valorização dos funcionários, a médio e longo prazos, depende de mudanças nesse panorama de que estamos falando. O modelo atual é insustentável. Se não for alterado, virá um novo Collor, um líder mais voluntarioso, que vai demitir metade dos funcionários, colocar em disponibilidade, arrochar salários, e não é isso que se quer.’


A imprensa não deve cair no jogo das conveniências políticas


‘Todo dia eu leio no próprio jornal onde trabalho especialistas criticando as taxas de juros e de câmbio. Mas não vejo os mesmos especialistas dizendo o seguinte: nós temos no Brasil um modelo institucional que provoca essa situação. A imprensa não faz a relação direta entre taxa de juros muito alta, que aprecia a taxa de câmbio, e a despoupança do setor público. Se todo o contingente de funcionários públicos não tem um estímulo para poupar, o país gera pouca poupança doméstica. E é ela que, em tese, financia o desenvolvimento. Na sua ausência, o país vai ao mercado internacional. Déficit em conta corrente, basicamente, é isso. Importamos poupança para financiar o nosso desenvolvimento. Essa importação de poupança é um dos elementos que apreciam a taxa de câmbio. Que os governos, os políticos, as autoridades se recusem a tratar desses temas, porque são temas politicamente difíceis, até se entende, mas a imprensa não deve cair nesse jogo.’


Lula avançou, mas veio o mensalão…


O presidente Lula, quando assumiu, em 2003, teve a coragem de enfrentar esse problema. Ele aprovou no Congresso uma emenda constitucional igualando o regime de aposentadoria dos funcionários públicos ao regime dos trabalhadores, o regime do INSS. Ele conseguiu aprovar a contribuição dos inativos para a Previdência, mas sofreu um desgaste político considerável com essa decisão. Vamos lembrar, por exemplo, que Heloísa Helena saiu do PT e montou o PSOL a partir da discussão da reforma. E depois Lula, principalmente a partir do mensalão, dois anos depois, quando ele sofreu aquele enfraquecimento, até risco de impeachment, passou a ter um apoio maior das centrais sindicais. Então, desistiu de regulamentar aquela reforma. Sindicatos de funcionários públicos chegaram a pedir desfiliação da CUT e passaram a combater fortemente a política econômica.’


Centrais preferem assuntos palatáveis


‘Em 2005, Lula se reconcilia com os funcionários, começa a conceder reajustes generosos para as principais categorias do funcionalismo e desiste definitivamente de regulamentar a reforma. Um dos compromissos da presidente Dilma foi o de regulamentar a reforma, mas não estamos vendo muito empenho nisso por parte do governo, porque a base do governo é integrada em grande parte por sindicalistas que são corporativistas, não aceitam a regulamentação da reforma da Previdência. Que, na verdade, tenta resolver o problema do futuro. Diz que a partir da criação dos fundos de pensão do setor público os funcionários que entrassem perderiam o direito à aposentadoria integral. E não se trata de penalizar esses funcionários. Eles vão ter direito ao teto da aposentadoria pelo INSS e o Estado vai bancar para eles um fundo de pensão, uma previdência complementar, o que a grande maioria dos empregados do setor privado não tem. As centrais sindicais preferem discutir assuntos politicamente mais palatáveis, como a defesa de um salário mínimo maior e da estabilidade dos funcionários públicos. Uma boa parte das centrais é dominada por sindicatos de funcionários públicos, que são mais fortes – seus afiliados têm salários mais elevados e, portanto, suas contribuições para os sindicatos são maiores.’