Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A arte de chorar mais alto

Pelos grandes jornais – e pelos grandes telejornais também –, chegam até nós notícias sobre intolerância e autoritarismo em Cuba e na Venezuela. Com muita regularidade. Isso significa que a nossa imprensa não tem olhos para as violações dos direitos humanos cometidas em outras partes do mundo, ou perpetradas por governos que não se pretendam ‘socialistas’?


Não. Eu, pelo menos, acredito que não. Sei que essa minha impressão contraria muita gente, que não vê nada além de uma gigantesca máquina de propaganda neoliberal no conjunto dos meios de comunicação no Brasil. Pois eu, de minha parte, que tantas vezes apontei defeitos das comunicações no Brasil, defeitos que agora viraram chavões de muitos discursos engajados, sem abrir mão de uma vírgula do que já escrevi, tenho afirmado recentemente, e afirmo uma vez mais, que acredito no oposto. Acredito que essa visão, ela sim, dos que só vêem propagandismo na imprensa, tem procurado desconstruir a percepção do valor da liberdade entre nós. Se fosse bem sucedida, essa visão teria efeitos muito mais nefastos que qualquer notícia incorreta ou deliberadamente distorcida.


Sobre isso, portanto, escrevo uma vez mais.


O pensamento perseguido em Cuba


Na semana passada, circulou entre nós com imenso destaque a notícia da morte de um prisioneiro político em Cuba, Orlando Zapata Tamayo, depois de 85 dias de greve de fome. O caso coincidiu com a visita do presidente brasileiro à ilha dos irmãos Fidel e Raúl, e por isso teve potencializada a sua repercussão. No mais, como tudo o que diga respeito à ilha, as notícias costumam ser desencontradas. Fontes diferentes afirmaram que o enterro de Zapata, que reuniu cerca de 100 pessoas, sofreu uma espécie de repressão preventiva da ditadura, que pretendia impedir que o funeral se convertesse em ato político. Em boa medida, o objetivo foi alcançado. Depois disso, outros cubanos entraram em greve de fome, alegando que não querem deixar que se apague a chama acesa por Zapata. Pedem a libertação de outros prisioneiros. Organizações de direitos humanos não reconhecidas pelo regime falam que em Cuba existem duas centenas de ‘presos de consciência’, ou seja, gente que está enjaulada porque pensa diferente.


Sobre assuntos assim, os maiores diários e telejornais brasileiros informam e discutem minimamente. Há quem atribua essas pautas a uma oposição ideológica contumaz que os proprietários dos meios de comunicação no Brasil moveriam contra o ‘socialismo’ de Chávez e dos irmãos Castro. Para os defensores de Chávez e dos Castro, a imprensa brasileira daria destaque às distorções e aos excessos de autoritarismo porque estaria empenhada em fazer propaganda contra o ‘socialismo’, apenas isso. Pelo mesmo motivo, ela não reportaria, jamais, o que chamam de ‘avanços’ na área da saúde, da educação, do saneamento básico.


Esses setores parecem postular que o suposto atendimento de necessidades básicas – um prato de comida, um teto, um leito hospitalar – substituiria a necessidade de liberdade. Parecem acreditar que um ambiente político que impõe a censura, mais ou menos explícita, é um problema menor. E, para dar sustentação a seus argumentos, denunciam os crimes contra os direitos humanos cometidos por governos ‘do outro lado’, como os Estados Unidos e Israel. Fazem essas denúncias como se a tal ‘grande imprensa’ simplesmente silenciasse sobre as atrocidades praticadas por autoridades ‘do lado capitalista’.


Muitos ainda acreditam que a ‘grande imprensa’ só publica reportagens desfavoráveis aos ditadores ‘socialistas’ – e favoráveis aos governantes pró-mercado. Por isso, desqualificam em regra todo discurso jornalístico baseado na idéia de objetividade, de independência e de crítica. Esse equívoco polui a visão que temos da nossa própria imprensa.


Bem sei que sempre que digo isso atraio pedradas e desaforos, mas o fato é que nossa imprensa é bem melhor do que esse tipo de mentalidade tenta dizer que é.


Os cybercoronéis mandam e desmandam no Brasil


Sem dúvida, há selvageria para todos os gostos nas páginas dos maiores jornais e revistas do país. Do mesmo modo, há brutalidades simbólicas – e às vezes brutalidades de fato – nos principais telejornais, no radiojornalismo e também em sites de grandes veículos na internet. Em alguns estados brasileiros, a imprensa é pouca coisa além do diário de um oligarca obscurantista, patrimonialista praticante, que também é dono de uma TV afiliada a uma rede nacional. Com esse equipamento nas mãos, os coronéis de última geração – os cybercoronéis, que aliam as formas de dominação das capitanias hereditárias às especulações financeiras e ao Bluetooth – promovem calúnias as mais diversas, impedem a diversidade no debate público, fazem propaganda (ou contrapropaganda) eleitoral o ano inteiro e desinformam o público.


Tudo isso é verdadeiro, mas dizer isso – que, aliás, já está dito, por mim mesmo, há muito tempo – é dizer muito pouco. Dizer isso e nada além disso pode nos fechar os olhos para os coronéis partidários, uma nova conformação de coronelismo de extração sindical, por assim dizer, que é igualmente nociva ao jornalismo. Alguns acreditam até mesmo que, por padecer de seus defeitos ancestrais, toda a imprensa brasileira deveria ser varrida para o lixo, pois nada do que ela publica tem validade. Pior ainda, acreditam que os neocoronéis que supostamente têm ‘consciência de classe’ poderiam ser mais ‘progressistas’ que os primeiros.


Não é assim. A despeito de todas as tragédias que decorrem das precariedades do jornalismo pátrio, tanto do lado dos coronéis à antiga, remodelados pelas novas tecnologias, como dos neocoronéis à esquerda, turbinados pelo dinheiro, há pluralidade no espaço público. O que tem nos faltado, paradoxalmente, é capacidade de enxergar que a pluralidade existe, apesar de tão graves limitações. Falta-nos perceber que o desafio posto para a democracia brasileira é o de aprofundar a liberdade de imprensa – não o de restringi-la. A liberdade de imprensa inclui a má qualidade, infelizmente, mas só um ambiente de mais liberdade é capaz de abrir horizontes para o aprimoramento da imprensa. Se nos permitíssemos um olhar menos apressado, menos partidário, e mais amplo ao próprio fenômeno da imprensa, chegaríamos a essa conclusão. Mas, lamentavelmente, estamos soterrados pelas agendas partidárias.


Por mais que alguns se esforcem em demonstrar o contrário, a imprensa brasileira não é monolítica. Por mais que tenha suas tendências de propaganda ideológica, às vezes obstinada, ela não é imune às contradições da realidade, que ela reflete, de um modo ou de outro. Por mais que nela existam vícios, nenhuma virtude viria de seu confinamento. Quanto mais livre, mais crítica ela será. E, por incrível que pareça, mais controlável ela será – controlável, eu quero dizer, pelo cidadão, pela sociedade, não pelo Estado.


Israel agora difama jornalistas


Eu pensava nisso enquanto assistia ao Jornal Nacional na sexta-feira (26/2). Tinha lá uma nota sobre a cara que Hugo Chávez fez quando faltou luz durante um pronunciamento oficial. A energia anda escassa na Venezuela, até mesmo para o chefe. Um pouquinho antes, entrou uma breve informação sobre o clima de perseguição a jornalistas que vai ganhando corpo não na Venezuela, mas em Israel.


Transcrevo a nota a seguir:




‘Campanha do governo de Israel irrita imprensa.


‘Uma campanha lançada pelo governo de Israel gerou protestos dos jornalistas estrangeiros que trabalham no país.


‘O governo quer que os israelenses que viajem para o exterior expliquem o que chamou de `a realidade do país´. A campanha usa vídeos com atores para ilustrar supostos erros cometidos pelos correspondentes.


‘Em um deles, um camelo é retratado como o principal meio de transporte em Israel. Em outro, uma apresentadora de TV fala sobre ruídos de uma guerra, enquanto são mostradas imagens de uma comemoração com fogos de artifício.


‘A associação de imprensa estrangeira de Israel classificou os vídeos como ofensivos.’


Se essas poucas linhas, lidas pelo apresentador, sem imagens, tivessem como objeto não o governo de Israel, mas o de Caracas, provavelmente os defensores do chavismo se apressariam em desqualificá-las como mais um capítulo da odiosa propaganda ideológica etc. Mas ela denunciou o governo de Israel, que agrediu a liberdade de imprensa. Isso significa que o JN entrou em pregação contra Israel? Ou significa apenas que está noticiando um fato relevante?


Sou pela segunda alternativa, mas, para isso, boa parte dos comentadores da imprensa no Brasil não costuma prestar atenção. Muitos deles falam de um espaço público que não examinam direito. Com seu olhar engajado – e engajado por antecipação – não nos ajudam a entender o que se passa e, em vez disso, tentam nos convencer a todo custo de que essa ‘mídia patronal’ mereceria menos, não mais liberdade. Não sabem que quando a ‘mídia patronal’ tiver menos liberdade, todas as outras, supostamente não-patronais, terão menos liberdade ainda.


Mas deixemos isso de lado.


Um caso dos anos 1950, para não esquecer


Em 1990, eu era editor da revista Teoria & Debate, então vinculada ao diretório estadual paulista do Partido dos Trabalhadores. Lembro-me de que publicamos, no número 11, uma entrevista que Jacob Gorender concedeu a Alípio Freire e Paulo de Tarso Venceslau. Foram sete horas de conversa gravada, que os dois entrevistadores sintetizaram em algumas páginas de revista.


Jacob Gorender contou uma história bastante esclarecedora. Na década de 1950, ele estava na União Soviética, estudando. Acompanhou de perto os debates em torno dos crimes de Stalin, durante os preparativos do XX Congresso do Partido Comunista, em 1956.


Ele conta:




‘Durante o curso [que ele fazia em Moscou], realizou-se o XX Congresso do PC da União Soviética. O [Diógenes de] Arruda foi ao congresso como representante brasileiro, e a ele se juntaram [Maurício] Grabois e Jover Telles, participantes do curso em Moscou. Para nossa surpresa, o jornal Pravda começou a publicar artigos e discursos de vários dirigentes com críticas a Stalin. Depois, veio o famoso informe confidencial de Kruchev. Não o lemos porque não nos foi distribuído. Só circulava dentro do âmbito do próprio PCUS. Mas nós ouvimos conferências de professores que nos transmitiram seu conteúdo. O informe fez a primeira revelação oficial de parte dos crimes de Stalin. Esse congresso vai abalar o PCB. Em maio de 1956, o informe foi publicado na íntegra pelo New York Times e pelos grandes jornais do mundo inteiro. Aqui no Brasil ele foi, a princípio, declarado falso pelos comunistas. Porém, Arruda, ao regressar da viagem, confirmou a autenticidade do documento.’ (T&D, nº 11, agosto de 1990, p. 28-29)


Gorender nos contou suas memórias com naturalidade. Ele lembrou que os militantes do PCB, na época, liam no Estado de S.Paulo as dimensões tenebrosas da tirania stalinista, suas carnificinas, seus desmandos, e atribuíam tudo à propaganda anticomunista. Semanas se passaram até que próprios representantes do PCB ao congresso do PCUS pudessem retornar de Moscou e confirmar o noticiário. O que a imprensa burguesa dizia era estritamente a verdade. Diante disso, correndo, os próprios dirigentes brasileiros, stalinistas até o dia anterior, se repaginaram em anti-stalinistas e se mantiveram em seus postos por muitos anos mais. Mudaram para permanecer.


Mas, curiosamente, o que os stalinistas diziam sobre a imprensa burguesa, as críticas que faziam, fáceis e virulentas, mesmo quando falsas, essas ficaram. Estão aí, até hoje, com as adaptações de praxe. Quando não podem negar a verdade dos fatos, essas críticas se insurgem contra a liberdade do mensageiro. Agora, como antes. Antes, como agora.


A quem serve esse tipo de histeria?


Especializados em chorar mais do que os outros, em fazer barulho a ponto de ensurdecer os demais, os denunciadores profissionais da mídia burguesa (ou patronal, ou imperialista, o que quer que seja) desenham uma paisagem forjada, irreal. Movidos por uma agressividade irracional contra os que deles discordam, numa postura que encontra paralelos entre as piores intolerâncias da direita, só vêem o que convém – e, quando convém, forçam o que veem. Não parecem ter compromisso com a função de informar a sociedade, mas com forças políticas exteriores à imprensa. Não prezam o arejamento, mas as diretrizes rígidas. Não enxergam as contradições, mas a verdade oficial. Choram quando contrariados – e, com sua birra estridente, iludem suas platéias, que ainda veem a liberdade de imprensa como um mal a ser contido.

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Jornalista, professor da ECA-USP