Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A batalha da realidade no campo das ideologias

A partir dos anos 1960, objetividade passou a ser quase um palavrão. Ninguém mais estava disposto a acreditar que uma notícia é objetiva só porque o jornalista ou o veículo de comunicação em que ele trabalha não deixaram sua opinião transparecer. Ninguém mais queria acreditar que a notícia na qual o discurso do senador Joseph McCarthy sobre os 205 comunistas no Departamento de Estado norte-americano foi reproduzida era objetiva porque o jornalista se limitou a reproduzir o que foi dito, indiferente de isto ser verdade ou não.

O conceito, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1920 como reação à manipulação midiática através da propaganda de guerra, que tinha exatamente em um comunista – Walter Lippmann – um de seus defensores, virou o alvo da crítica cultural na década de 1960 por motivos parecidos com aqueles que motivaram o seu surgimento.

O que parece ironia do destino, no entanto, precisa ser analisado mais de perto. A objetividade criticada a partir dos anos 1960 é a da neutralidade, que nada mais é do que a tentativa de esconder a própria subjetividade. O conceito que tinha o crivo de Lippmann não se refere a isso. Pelo contrário, tem como ponto de partida a idéia de que não é possível ser objetivo. Por isso, jornalistas deveriam utilizar um método para fazer seu trabalho de buscar e conhecer a realidade que se assemelhasse ao científico.

No entanto, desde que esse conceito surgiu, muitas águas passaram pelo moinho, esvaziando-o de significado e/ou ocupando-o com outros. Desde então, objetividade virou ‘pau para toda obra’ e é utilizada para definir tudo o que se deseja do jornalismo: que o jornalista não exponha sua opinião, que o problema a ser noticiado seja apresentado de forma equilibrada, que o repórter ouça sempre os dois lados, que a realidade dura e verdadeira seja mostrada. Objetividade virou até sinônimo de texto claro, acessível, ou seja, bem escrito.

Objetividade e objetividades

A crítica da objetividade não contribuiu para melhorar a situação. Pelo contrário, a postura de ‘objetividade não existe’ impediu a discussão a avançar, já que o que não existe não precisa ser discutido. Para os jornalistas, isto significa a completa falta de orientação, segundo o lema ‘faça o que fizer, você estará sempre errado’.

Paralelamente, isso abriu espaço para que qualquer um ocupe este conceito com aquilo que condiz com seus próprios interesses. Do outro lado do palco lotado por esses argumentos, estamos todos nós – seja contra ou a favor a tal da objetividade, seja ela qual for – que dependemos do jornalismo para saber o que está acontecendo no mundo à nossa volta. Para todos aqueles que têm no jornalismo a sua principal fonte de acesso à realidade, a necessidade de notícias que correspondam aos acontecimentos continua existindo.

A confusão gerada pela polissemia do conceito de objetividade tem efeitos colaterais. Como Max Weber já dissera, a falta de distinção da linguagem cotidiana é a manta que cobre a falta de clareza não só do pensamento, como também do querer. Muitas vezes, ela é o instrumento para esconder, mas também um meio para impedir o desenvolvimento dos questionamentos corretos.

A postura da ‘objetividade não existe’ trava o avanço da discussão tanto quanto a da ‘objetividade é tudo e muito mais’. Ambas deixam os jornalistas em uma posição desconfortável e não oferecem alternativa alguma. Como reação a isto tem-se observado nos últimos anos a tentativa de se redefinir o conceito de objetividade e oferecer modelos de ação aos profissionais da mídia que têm como ganha-pão a realidade.

‘O mundo de Jimmy’

Para saber como agir, no entanto, é necessário primeiro saber o que se quer, qual é o objetivo a ser alcançado. Para ter um jornalismo mais objetivo, é preciso primeiro saber qual é a ‘objetividade’ a que se se refere. Este é um dos problemas centrais da visão do tema que Ali Kamel expôs no seu artigo neste Observatório [ver ‘Jornalismo e objetividade‘, de Ali Kamel, e também ‘Quando o óbvio não é óbvio para todos‘, de Luiz Weis, e ‘Jornalismo, a objetividade subjetiva‘, de Felipe Pena]. Para Kamel, às vezes objetividade é isenção, às vezes é um texto lógico, de vez em quando é a escolha de fatos importantes, como se todas essas coisas estivessem relacionadas entre si e se garantissem reciprocamente. E como se todas elas levassem ao conhecimento da realidade através do jornalismo. Desde quando uma história passa a ser verdadeira porque o sujeito que a conta não exprimiu sua opinião?

Além disso, um texto pode ser claro, lógico, bem escrito, e tratar de algo completamente fictício. Basta lembrar do caso de ‘O mundo de Jimmy’, a reportagem escrita pela ex-jornalista Janet Cooke para o Washington Post sobre um garoto de 8 anos viciado em heroína. Janet Cooke tem um talento extraordinário para escrever. Lamentável é apenas que o garoto nunca existiu. Em ‘O mundo de Jimmy’, não faltou lead, nem coerência, nem lógica. Faltou realidade.

O conhecimento da realidade

Ali Kamel, como muitos outros que se ocupam com o tema objetividade, confunde o que é importante (relevância) com o que é real (objetividade). O jornalista da Rede Globo questiona se não há a possibilidade de algo ser objetivo tanto para jornais de esquerda quanto de direita. Para isso, cita o exemplo das cestas de temas do Los Angeles Times, Washington Post e New York Times que, embora tenham posições políticas diferentes, oferecem os mesmos temas aos seus leitores. A sua intenção é, provavelmente, apontar para o fato de que intersubjetividade, ou seja, a possibilidade de pessoas com posturas ideológicas diferentes chegarem a uma mesma conclusão sobre algo, é possível.

O problema é que Kamel mistura alhos com bugalhos. De fato, a realidade é uma só. Mas, como o próprio autor reconhece, não se trata de realidade, mas sim de conhecimento, ou seja, de representações da realidade. Estas não são e nem deveriam ser as mesmas. Há aspectos da realidade que podem ser intersubjetivos, como por exemplo o número de mortos em um acidente. Estes aspectos correspondem geralmente às quatro primeiras perguntas do lead, o quê, quem, quando e onde. O número de pessoas que morreram com o desmoronamento nas obras do metrô em São Paulo deveria ser o mesmo em qualquer jornal, seja ele de esquerda ou de direita, contra ou a favor de privatizações ou do governador José Serra. A intersubjetividade das razões do acidente (como e por quê), no entanto, é limitada.

Critérios e rotinas

Relevância não é uma questão de verdade. Se um jornal deveria colocar nas suas manchetes a informação de que Xuxa ainda tem dentes de leite é uma questão. Uma outra questão é se a Xuxa realmente tem dentes de leite. O fato de que esta informação, e não outras, esteja na manchete de um jornal, também não quer dizer que o que não tenha sido noticiado não tenha acontecido.

O que Kamel expõe no seu exemplo não é a ‘prova dos nove’ de que o conhecimento da realidade pode ser intersubjetivo, mas sim de que os critérios de relevância tanto no Los Angeles Times quanto no El País são os mesmos, porque são fixados, estipulados. O que ele comprova com isso é uma voz uníssona sobre o que a imprensa define como importante, o que é preocupante e deveria ser questionado.

Critérios de relevância são determinados tanto por fatores extramidiáticos quanto pelas rotinas produtivas. Assim, qualquer declaração do presidente é importante, não importando o que está sendo dito. E o jornalista que avaliar esta situação de forma diferente vai ser tido como incompetente. Quanto às rotinas, se a cobertura política for feita por setoristas, que não só trabalham no mesmo local como também ouvem sempre as mesmas fontes, então as manchetes dos jornais serão relativamente ‘as mesmas’. Relativamente porque o acontecimento é o mesmo, mas o enquadramento pode variar. Se isto é um sinal de competência técnica ou qualidade, também é questionável.

Realidade do conhecimento

Dizer que o jornalismo é uma forma de conhecimento implica uma série de coisas. Uma delas é que, como se trata de conhecimento, não se pode falar em ‘espelhar’, já que – como Kamel reconhece – não se pode conhecer a realidade como um todo. Só é possível se aproximar dela.

Além disso, é preciso simplesmente assumir que ninguém procura conhecer algo por falta de interesse. Muitas vezes ocorre exatamente o oposto e a única chance de o público conhecer um determinado corte da realidade é quando um determinado interesse se impõe aos outros. Se algo se torna público, é porque alguém teve interesse em mostrar. Se a cobertura jornalística se concentra na compra de um dossiê, que contém vídeos mostrando o atual governador de São Paulo, José Serra, na entrega de ambulâncias compradas em um processo suspeito de superfaturamento, é porque há interesse nisto. Se ela não se ocupa com o conteúdo das fitas em si, também é por interesse.

Isto não quer dizer que as denúncias contra o PT sejam falsas ou verdadeiras. Isto mostra apenas que a busca da realidade é feita dentro do campo minado das ideologias. Conhecimento e interesse podem, mas não precisam necessariamente se contradizer.

Neste contexto, a ‘vacina natural’ que Kamel propõe – de que o jornalista tente conscientemente despir-se de suas paixões, mesmo sabendo que isso não é realizável totalmente, pode acabar se tornando narcose. Uma coisa é se despir de certezas, que deveriam sempre ser tratadas como suspeitas. Outra é deixar as paixões de lado. Uma coisa é ser dogmático, outra coisa é canalizar os interesses pessoais em uma reportagem bem apurada, com um método intersubjetivo.

Condições de investigação

Uma notícia só pode ser objetiva se estiver em correlação com a realidade. Para isso, jornalistas precisam investigar, pesquisar, ouvir fontes, levantar informações, checá-las, indiferente do fato de eles pertencerem a um grupo social, a uma religião ou a um partido. Uma afirmação se torna objetiva quando confrontada com a realidade, e não por causa de quem a fez.

Para fazer essa confrontação, é preciso ter jornalistas competentes, que dominem os métodos de reportagem. É neste ponto que está o potencial da proposta de Kamel. O jornalismo de fato tem um método, que é um importante instrumento para se aproximar da realidade. Este método tem que ter como objetivo o conhecimento da realidade, e não a produção de relevância para os acontecimentos.

No entanto, para dar conta desta tarefa, só o método não basta. Jornalistas também precisam de carros de reportagem, linhas de telefone, acesso às fontes, tempo e liberdade para, por exemplo, ouvir também o inimigo político do dono do jornal. Eles também precisam de fontes competentes, que estejam dispostas a fornecer informações. Objetividade jornalística não é só um problema ligado à pessoa do jornalista, mas também às empresas de comunicação e às fontes. É uma questão de condições de investigação.

Não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos. Sem colocar o dedo na ferida e discutir criticamente as condições sob as quais jornalistas conduzem suas reportagens e a sua necessidade de produzir relevância, a solução do problema da objetividade vai continuar sendo jogada sobre a ‘subjetividade’ pessoal de cada jornalista, com a reação de que objetividade continuará sendo tratada como algo impossível.

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Jornalista, Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Comunicação pela Universidade de Leipzig (Alemanha)