Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

À caça de jornalistas estrangeiros

Enquanto o centro do Cairo vivia novas batalhas entre partidários do presidente Hosni Mubarak e manifestantes pró-democracia, jornalistas estrangeiros se tornavam alvo de uma campanha repressora, que não poupou sequer membros de organizações de direitos humanos, e que parecia destinada a afastar a mídia do palco dos enfrentamentos. Carros de reportagem foram apedrejados, equipamentos arrancados e quebrados e jornalistas agredidos, enquanto o governo acusava estrangeiros de fomentarem os protestos. Mais de 20 profissionais foram detidos, e o paradeiro de pelo menos um deles era desconhecido.


A fúria dos partidários do governo resultou na primeira morte de um estrangeiro, um grego espancado e esfaqueado perto da Praça Tahrir, morrendo no lobby do hotel Ramsés Hilton. O hotel, um dos mais procurados pela mídia estrangeira, usado até ontem [quinta, 3/2] pelo Globo, devido à vista para o ponto central dos protestos, tornou-se alvo – tanto com o cerco de manifestantes, quanto com a expulsão disfarçada de convite a jornalistas para se retirar. Se na semana passada o hotel servira de hospital de campanha para opositores, ontem se transformou em cárcere para jornalistas. Vândalos o invadiram duas vezes.


– Apenas no meio da tarde o Exército veio proteger o hotel. Os manifestantes passaram muito tempo jogando pedras e todos os equipamentos de imagem foram confiscados pela segurança – contou ao Globo o brasileiro Otávio Mendes, produtor da CBC, do Canadá.


Mendes tentou comandar um plano de retirada, mas esbarrou na recusa de motoristas de táxi a levar estrangeiros, temendo ataques. Nem ofertas de US$ 200, equivalente a 30 vezes o salário mínimo egípcio, convenceram os taxistas.


Uma entrevista do vice-presidente Omar Suleiman ajudou a disseminar a ideia de que os estrangeiros estariam fomentando os protestos.


– Quando existem manifestações desse porte, há estrangeiros que virão e tirarão vantagem. Eles têm interesse em aumentar a energia dos protestos – disse Suleiman à TV estatal.


Estados Unidos criticam ataque sistemático


Em Washington, o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, considerou inaceitável ‘o ataque sistemático’ à imprensa. A secretária de Estado, Hillary Clinton, disse que ‘o governo egípcio deve demonstrar sua vontade em garantir aos jornalistas a capacidade de registrar os eventos’.


Entre os detidos estão dois jornalistas do New York Times, soltos na manhã de ontem [3/2], e dois do Post. Dois profissionais da al-Jazeera foram arrancados do carro e detidos. Outros três da mesma emissora foram presos e soltos. Um sexto está desaparecido. O brasileiro Luiz Antônio Araujo, do jornal gaúcho Zero Hora, foi atacado a socos e pontapés na Praça Tahrir. O grupo, armado com pedras e pedaços de pau, levou a câmera e tentou roubar seu passaporte.


Movimentar-se é difícil e perigoso. Um repórter grego foi ferido na perna por uma chave de fenda. O carro de Anderson Cooper, da CNN, foi atingido por uma pedra. Na véspera, Cooper e sua equipe já haviam sido atacados na rua.


O Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ) denunciou a campanha do governo para difamar estrangeiros, mostrando-os como espiões em missão para desestabilizar o país. O CPJ registrou 15 incidentes de intimidação, prisão e agressão apenas ontem – classificados como ‘repulsivos’ pelos Repórteres sem Fronteiras (RSF).


– Parece que o objetivo é esvaziar o Cairo da mídia estrangeira – declarou Giles Lordet, diretor de investigações do RSF.


Num indício de que a situação fugiu ao controle, a ONU começou a remover cerca de 350 funcionários do país – que junto às famílias formam um grupo de cerca de 600 pessoas – para a ilha de Chipre. Ativistas de direitos humanos também estiveram na mira: um centro usado por ONGs foi ocupado pela polícia e 12 pessoas, presas. Entre os detidos estão três integrantes da Anistia Internacional e a Human Rights Watch.


No Ramsés Hilton, um grupo de brasileiros, formado por integrantes do Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, conseguiu deixar o hotel de manhã. Mas a travessia foi tensa. No caminho, o carro foi parado numa barreira do Exército e os soldados confiscaram um cartão de memória do Globo, com fotos dos protestos. Mas, ao menos, os militares impediram que manifestantes se aproximassem do táxi que levava o grupo para um hotel mais afastado do centro.


Quem buscava estender a reserva no Hilton era informado de que a lotação estava esgotada – apesar de o hotel ter 855 quartos. Um recepcionista sugeriu a saída o mais rápido possível:


– Eles (os manifestantes) sabem que vocês estão aqui. Saiam porque vai ficar perigoso.


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Brasileiros vivem dia de terror


Roberto Maltchik # reproduzido de O Globo, 4/2/2011


Em meio à convulsão social do Egito, dois repórteres da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) passaram horas de terror numa delegacia do Cairo. Logo após desembarcarem no aeroporto da capital, na quarta- feira, Corban Costa e Gilvan Rocha foram abordados por homens fortemente armados numa barreira policial, quando se deslocavam para o centro do Cairo. Foram retirados do táxi, postos de frente para um paredão e tiveram os olhos vendados, antes de serem conduzidos para uma delegacia. Lá, passaram 16 horas num cubículo, sem água e comida.


– Achei que iria morrer a qualquer momento. Graças a Deus, estamos bem e voltando para casa – afirmou Gilvan, repórter cinematográfico que teve todo equipamento confiscado ainda no desembarque.


Eles retornaram ao aeroporto – onde aguardavam até a noite de ontem na esperança de antecipar o voo de volta – sem sequer chegar ao centro do Cairo, por determinação policial, após horas no cárcere. Não houve explicações sobre os motivos da detenção. Ao sair da delegacia, entraram numa van, onde foram orientados a manter a ‘cabeça baixa e não olhar para os lados’. Diversas pessoas estavam no veículo, com os olhos vendados.


– A sensação é horrível. Achei que seríamos fuzilados num paredão – disse Costa.


Em nota, o Itamaraty protestou contra a detenção dos jornalistas brasileiros e afirmou que tem a ‘expectativa de que as autoridades egípcias tomem medidas para garantir as liberdades civis e a integridade física da população e dos estrangeiros’. A Chancelaria brasileira ainda fez votos para que a instabilidade seja superada ‘com a maior rapidez possível, num contexto de aprimoramento institucional e democrático do Egito’.


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Perseguição do governo egípcio é ato de desespero, diz jornalista brasileiro


Renata Giraldi # reproduzido da Agência Brasil, 4/2/2011


Depois de serem detidos, vendados e terem os equipamentos apreendidos no Egito, o repórter Corban Costa, da Rádio Nacional, e Gilvan Rocha, da TV Brasil, conseguiram sair do Cairo e chegar hoje (4/2) por volta do meio-dia a Paris. Da França, Corban disse à Agência Brasil que ele e Gilvan só conseguiram dormir no voo, pois, enquanto estavam no aeroporto egípcio temiam pela própria segurança, cercados por policiais e militares armados.


Para Corban, a pressão contra o trabalho da imprensa no Egito é um ato de desespero do governo do presidente Hosni Mubarak.Leia a seguir, os principais trechos da entrevista de Corban.


Depois dessas últimas horas, o que vem à sua cabeça?


Corban Costa – Só conseguimos relaxar de verdade, dormir e desligar do mundo, no avião, no voo do Cairo para Paris. Eu e o repórter cinematográfico Gilvan Rocha não desligamos um minuto sequer, enquanto estávamos no aeroporto no Cairo, porque havia militares e policiais por toda parte. No aeroporto no Egito, nós dois ficamos isolados outra vez.


No geral, a imprensa estrangeira denuncia a pressão do governo do presidente Hosni Mubarak para impedir a divulgação de informações e imagens. Qual sua análise sobre isso?


C.C. – A impressão é de desespero por parte do governo Mubarak. Há informações de que o governo paga para que funcionários públicos e outras pessoas façam campanha em favor do Mubarak e agridam os estrangeiros. A orientação é sufocar os movimentos de protestos contrários ao governo.


Há relatos de jornalistas estrangeiros que foram agredidos, humilhados e roubados, com vocês ocorreu isso também?


C.C. – Acho que tivemos mais sorte. Por exemplo, fomos presos junto com uma equipe de uma televisão francesa. Essa mesma equipe foi presa e apanhou duas vezes: uma quando estava na prisão e outra quando foi solta e parada pela fiscalização policial. Conosco isso não aconteceu. Não houve agressões verbais ou físicas na prisão nem fora dela exceto um policial que nos colocou em uma van, de maneira um pouco mais incisiva.


Mas na prisão você teve a sensação que ia morrer?


C.C. – Isso passa, sim, pela cabeça porque colocam venda nos olhos, levam a gente para um lugar desconhecido, depois tiram as vendas e nos deixam a mercê da própria sorte. Ninguém fala nada a não ser um interrogatório. Passei 18 horas em uma sala mínima que não havia água nem banheiro, só duas cadeiras e uma mesa. Nessa mesma sala estavam o Gilvan e um estudante alemão, que foi preso porque fotografou a manifestação com uma máquina amadora.


Não houve agressão, mas teve pressão psicológica.


C.C. – A pressão psicológica é a pior das sensações. Você não sabe onde está nem o que vai acontecer. Também não sabia nada sobre o Gilvan, que todo o tempo estava comigo, e de repente foi tirado de perto de mim, e só depois ficamos no mesmo local. De repente passa tudo na sua cabeça, eu pensava na minha família, nas minhas filhas e rezava. Rezei muito e o tempo todo.


O que os policiais queriam saber de vocês? Não houve um tratamento diferenciado porque vocês eram de uma empresa pública de comunicação?


C.C. – Nós dissemos que éramos de uma empresa pública do Brasil, mas isso não mudou em nada o tratamento. Nossa missão no Egito era transmitir para o Brasil exatamente o que ocorria nas manifestações, detalhes sobre os protestos e como reagiam o governo do presidente egípcio, Hosni Mubarak, e a oposição. Enfim, toda a questão. Mas os policiais queriam saber como transmitiríamos as informações e as imagens, eu disse que era por celular e internet. Também queriam saber o tom das reportagens que fazíamos do Egito.


A Embaixada do Brasil no Egito ajudou vocês em algum momento?


C.C. – O tempo todo o embaixador do Brasil no Egito, Cesario Melantonio Neto, esteve em contato conosco e nos ajudou. Ele nos orientou sobre como deixar o país, também prometeu providenciar o envio do equipamento que foi apreendido pelos policiais egípcios. Mas ele próprio reconheceu que estava com dificuldades, pois o governo Mubarak está todo desmantelado, há um caos administrativo no Egito. [Edição: Talita Cavalcante]

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Enviado especial de O Globo ao Cairo