Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cadeia não substitui a escola

Onde a presença do Estado é mais sentida no Brasil? Na arrecadação monstruosa e nos péssimos serviços prestados em troca.

Esta situação não começou agora, vem de longe, mas a modernização tecnológica tem servido ao Estado mais para punir do que para conhecer, prestar atenção e socorrer aqueles que mais precisam do Estado, que são os pobres, evidentemente.

Se o Estado não proporciona creche, nem escolas, nem hospitais, para o rico não faz diferença: ele volta a pagar pelos serviços que seus impostos deveriam sustentar, paga duas ou mais vezes pelos serviços negados e segue a vida.

Para o pobre, porém, estas insuficiências são verdadeiras tragédias. Os filhos dos pobres não recebem sequer carinho numa etapa decisiva da formação de suas personalidades porque os pais não têm tempo para atendê-los ou, pior do que isso, compõem uma sinistra dinastia: não dão o que não tiveram e vão passando isso de geração em geração.

O tema resultou em interpretações econômicas, políticas e sociais clássicas. Além deste tipo de reprodução, reproduz-se também aquela que foi magnificamente estudada por Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu num livro intitulado justamente A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, publicada em Paris, em 1970, pela Editora Minuit, depois traduzido para várias línguas, inclusive para o português, tendo sido bibliografia básica nas boas universidades brasileiras desde então.

Sociedade em erupção

Bourdieu, falecido em 2002, aos 72 anos incompletos, era filho de colonos franceses, cursou Letras e Filosofia, tendo sido assistente de Raymond Aron na Faculdade de Letras de Paris, depois de ensinar Letras também na Argélia, país onde prestou serviço militar. Ao lado de Roland Barthes e Michel Foucault, integra um grupo de intelectuais franceses cuja obra não pode ser ignorada por ninguém que queira entender o mundo em que vivemos.

Em resumo, de um modo que não pode ser aprofundado num pequeno artigo como este, a sociedade reproduz seus mecanismos de dominação também no ensino, a partir de estratégias básicas, que inclui a inculcação de conceitos que têm o fim de reproduzir a situação vigente.

Um pouco de teoria é necessário para entender o que o Brasil faz com os pobres, notoriamente com os pobres mais indefesos, que são aqueles que foram privados da educação, não apenas na escola, mas também em outras instituições que teoricamente se encarregariam também de sua formação ou correção de rumos, de que são exemplos a família, a fábrica, a empresa e, claro, a prisão, já em último recurso. A prisão receberia o infrator para corrigi-lo, não apenas para puni-lo e para proteger a sociedade de suas ações nefastas.

Ocorre, porém, que do jeito que a reprodução está instalada, as coisas tendem a piorar.

Quando a sociedade entra em erupção, como vem de ocorrer com a morte cruel do menino João Hélio Fernandes Vieitas, de apenas 6 anos, no Rio, arrastado por várias quadras dependurado pelo cinto de segurança (?) do automóvel em que estava, surge – mais uma vez, mas quantas serão necessárias? – o que se denomina na mídia de clamor social.

Procedimentos institucionais

O que vemos? Parlamentares, tremendamente desgastados por um aumento de 92% que queriam dar a si mesmos, elevando sua remuneração para mais de 100 mil reais mensais, tentam limpar o nome com leis lastreadas num tema e num problema recorrentes há mais de 60 anos, pelo menos, que é o da redução da maioridade penal.

Num improviso, semana passada, o presidente Lula, que fala de um modo que todos entendem, principalmente os seus eleitores, a maioria da nação, pois que o reelegeram por larga margem de votos, fez a síntese radical do que ‘eles’ estão reivindicando, ao dizer que agora pedem a antecipação da maioridade penal para 16 anos, ‘amanhã estarão pedindo para 15’ e ‘quem sabe algum dia querem punir o feto’.

Todos sabem o óbvio: mesmo que, por hipótese absurda, o pobre nascesse preso, fosse engaiolado ainda no berço, a criminalidade não apenas não diminuiria, como aumentaria.

E por quê? Porque as prisões brasileiras, notórios centros de violação dos mais comezinhos direitos humanos – sejam cárceres propriamente ditos ou presídios cruéis, disfarçados de instituições de socorro ao menor infrator – oferecem ensino fundamental, médio, superior, mestrado e doutorado no crime!

É difícil que não piore quem ali entra. A maioria das prisões brasileiras poderia receber na entrada a inscrição que Dante Alighieri colocou na porta do Inferno na Divina Comédia: ‘Deixai toda esperança, vós, que entrais!’.

Se alguns presos podem ainda manter esperança de, cumpridos os ritos legais, que incluem o cumprimento da pena exigida e devidas amortizações, deixar o cárcere e reintegrar-se à sociedade, isso se deve mais a iniciativas de pessoas abnegadas, incluindo parentes, amigos, conhecidos, do que a procedimentos institucionais, com exceção talvez, de instituições religiosas, de que é exemplo a pastoral dos presos da Igreja e de profissionais do Direito que se batem por aperfeiçoar e aumentar as defensorias públicas.

Sofrimento inaudito

Em resumo, ao contrário do que se apregoa (um Estado ineficiente), o Estado é eficiente na punição cruel dos mais pobres e péssimo na defesa dos direitos humanos que, não esqueçamos, o preso também tem.

O que não deve pensar de parlamentares defensores de maior punição um preso que vê entre eles deputados denunciados, por ninguém menos do que o procurador-geral da República, como membros de uma organização criminosa destinada a roubar? O pobre jamais entenderá por que razão ele, que, famélico, furtou ou roubou, está preso, e o bacana, por desmedida ambição, furtou e roubou muito mais e está livre.

No contexto fervilhante, alguns números ajudam a compreender melhor o tal clamor social: 76% dos presos adultos estão nos cárceres por terem roubado ou furtado. Conquanto dados como sinônimos no senso comum, furtar é uma coisa e roubar é outra, pois o segundo verbo inclui a violência, ao passo que o primeiro pode dispensá-la. Apenas 19% foram presos por tráfico e neste número estão pessoas que, embora apenas viciadas, tiveram seu vício tipificado equivocadamente ou de má-fé como tráfico.

Será uma tragédia para o Brasil se a mídia, com a força notória que tem, encampar e defender a tese da redução da maioridade penal. Milhões de adolescentes brasileiros pobres já não recebem no meio em que vivem sequer o tratamento dispensado aos animais, mas pelo menos estão livres. Na prisão, as coisas vão piorar.

O jornalista Paulo Santana resumiu há algum tempo, em artigo publicado em Zero Hora, o seguinte conceito: quanto pior forem tratados os presos, pior para os que estão livres. Antecipar a maioridade penal é antecipar sofrimentos inauditos e reduzir ainda mais as chances de recuperação.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br