Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ‘canetada’ que o governo não explicou

A coisa era pior do que se podia imaginar. Na versão anterior deste artigo, eu havia dito erroneamente que o Ministério do Trabalho e Emprego havia feito alterações na proposta da FENAJ para criação do CFJ (Conselho Federal de Jornalismo), e que essas mudanças abriam espaço para o governo exercer o controle sobre o jornalismo brasileiro. Eu havia dito também que ao trabalhar sobre o texto encaminhado pela FENAJ, o MTE aproveitou para dar uma ‘canetada’, permitindo que, sendo aprovado pelo Legislativo, o projeto de lei faça com que o novo órgão tenha atribuições que podem se estender até mesmo às atividades dos veículos de comunicação.


Na verdade, a mudança não foi feita pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), cujo titular é o ministro Ricardo Berzoini, mas sim na Casa Civil, chefiada pelo ministro José Dirceu. A tabela comparativa dos dois textos – o que foi encaminhado pelo MTE e o produto engendrado a partir dele [clique aqui para ver a tabela] – deixa evidente a intenção do governo de extrapolar a pretendida regulamentação profissional. A proposta foi assinada em 27 de maio deste ano por Berzoini (http://www.fenaj.org.br/projeto_aprovado_mte.htm).


Entre as atribuições previstas em seu artigo 1º para o CFJ, está a de ‘disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista’. No anteprojeto elaborado pela Casa Civil, esse trecho teve o acréscimo de algumas palavras, e ficou sendo ‘disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo’ (http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Projetos/

PL/2004/msg465-040804.htm).


Sem explicações


Não há como acreditar na hipótese de que essa alteração tenha sido fruto de um mero descuido ou de uma simples ênfase nos aspectos da profissão de jornalista. A ‘canetada’ é corroborada por duas outras modificações. O texto original, da equipe de Berzoini, previa entre as competências do CFJ a de ‘resolver os casos omissos nesta lei e demais normas pertinentes ao CFJ e ao exercício da profissão de jornalista’ (art. 2º, XIV). No anteprojeto de lei assinado pelo presidente, esse dispositivo também teve o acréscimo ‘e da atividade de jornalismo’. A mudança feita pela equipe do ministro José Dirceu não só reforça a alteração no artigo 1º, como também dá ao CFJ – e aos conselhos estaduais a serem criados – plenos poderes nos casos não previstos em lei para toda a atividade jornalística.


Por mais que se tente manter uma saudável dúvida sobre aquilo que os estudiosos das leis chamam de intenção do legislador, o trabalho da Casa Civil parece não ter sido pautado pela menor preocupação em não deixar evidente suas razões de Estado. A terceira ‘canetada’ fecha o círculo da organicidade do dispositivo enxertado nos dois primeiros artigos. Ela está também no artigo 3º, que trata da competência dos Conselhos Estaduais de Jornalismo (CRJs).


Ao preencher os vácuos da proposta da Fenaj no que se refere às atribuições e competências dos CRJs, a equipe da Casa Civil acrescentou o inciso IV: ‘Exercer a fiscalização do exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo’. Não há nenhuma explicação para essas alterações na ‘Exposição de Motivos’ do anteprojeto, datada de 28 de maio deste ano e assinada pelo ministro Berzoini, que permanece como anexo ao anteprojeto enviado ao Legislativo (http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/

Projetos/EXPMOTIV/MTE/2004/004.htm).


Cacoetes autoritários


No domingo seguinte à publicação do anteprojeto no Diário Oficial da União (7/8), o Estado de S.Paulo noticiou declaração do ministro José Dirceu sobre o propósito governamental de disciplinar a imprensa. Na mesma edição, o centenário jornal da família Mesquita registrou a fala do secretário de Imprensa do Planalto, Ricardo Kotscho, de que o governo abriu a discussão sobre o assunto ao enviar o anteprojeto para o Congresso.


Mais realista que o seu colega com assento no Palácio do Planalto, a presidente da Fenaj, Beth Costa, já havia comunicado, por meio do website da entidade, sua posição de que não há nada a ser discutido sobre o pacote encaminhado ao Legislativo. Qualificando a assinatura do anteprojeto pelo presidente da República como uma vitória, ela afirmou que ‘precisamos de um movimento nacional de todos os jornalistas para pressionar os parlamentares para que o projeto possa ser rapidamente aprovado sem emendas’ (http://www.fenaj.org.br/

campanha_em_defesa_da_profissao_extra8.htm).


Essa manifestação não foi um posicionamento isolado dentro da entidade. No mesmo dia, o vice-presidente eleito da Fenaj e presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Fred Ghedini, afirmou: ‘Agora, devemos nos preocupar para que o texto seja aprovado pelo Congresso da forma como ele foi enviado, sem muitas alterações’ (http://www.sjsp.org.br/

05_08_2004%20lula_cfj.htm).


O argumento principal da entidade para tentar justificar o prosseguimento da matéria sem qualquer discussão é que ela foi fruto de uma proposta lançada no Congresso Nacional de Jornalistas, em 2000, e que passou por diversos encontros nacionais e estaduais da categoria. Seria interessante a instituição fazer esclarecimentos sobre sua representatividade e a de seus eventos, com base em números.


Uma das alterações da Casa Civil no texto do MTE, contudo, não deverá ser objeto de reclamação da ‘categoria’: ao definir as infrações disciplinares dos jornalistas, além de outras definidas pelo Código de Ética e Disciplina, a entidade incluiu a de ‘deixar de pagar aos Conselhos, pontualmente, as contribuições a que esteja obrigado’. A palavra ‘pontualmente’ foi excluída pela equipe de José Dirceu.


No domingo (7/8), com o editorial ‘Mão sinistra’, a Folha de S.Paulo se referiu às propostas de regulamentação profissional do jornalismo e de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Inspirado no personagem Doctor Strangelove – representado por Peter Sellers no filme de Stanley Kubrick (1964) –, que mal conseguia controlar a saudação nazista feita involuntariamente por seu braço mecânico, o editorial qualificou as duas iniciativas como cacoetes autoritários de grupos políticos hoje forçados a viver sob as regras democráticas. Poderia ter aproveitado para lembrar aos leitores que no final do filme a mão sinistra do cientista se volta contra o pescoço dele mesmo.

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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente