A rejeição do projeto de lei sobre os conselhos profissionais dos jornalistas merece uma análise atenciosa e paciente. Os últimos quatro meses reservaram um período de intensa discussão nos setores mais atentos da categoria, uma época que há muito não se via no país. Desde o envio do projeto ao Congresso Nacional, em agosto, muito se escreveu sobre a proposta, muito se ouviu sobre a sua oportunidade e o mérito na instituição de um órgão como o Conselho Federal de Jornalismo. Mas embora a categoria tenha se revolvido em debates, na minha opinião isso não foi suficiente.
É uma pena que tenhamos perdido um momento como esse. Uma pena que a cobertura sobre o assunto tenha se mostrado tão viciada quanto em outros casos polêmicos, nos quais os interesses privados sobrepõem-se aos demais. Que muitos jornalistas tenham adotado o mesmo comportamento destrutivo que condena pessoas e entidades diante de qualquer suspeita, num evidente prejulgamento com condenação sem defesa. Assim, num primeiro momento, atacaram o projeto porque ele fora enviado ao parlamento por Lula, fato que configuraria intervenção truculenta do Planalto na atividade jornalística; fato que configuraria também adesão e atrelamento político da Fenaj ao governo.
Não adiantou mostrar que a iniciativa do envio era constitucional e prerrogativa única do Executivo, e que a proposta significava justamente a desvinculação da categoria do Ministério do Trabalho no que concerne a emissão de registros profissionais. Os ataques continuaram.
Num segundo momento, questionaram a legitimidade da Fenaj e dos partidos que com ela sustentaram a criação do CFJ. Mas que outra entidade melhor representa os jornalistas em número de associados e em extensão nacional? A ABI, cuja diretoria foi eleita com pouco mais de 300 votos? A ANJ, cuja cúpula cinicamente defendeu a liberdade de expressão, quando são justamente os proprietários dos veículos quem selam as vozes divergentes em suas empresas?
Num terceiro momento, passaram a apontar as falhas no projeto do CFJ – e elas existiam, sim. Os sindicatos e a Fenaj patrocinaram dezenas de debates em todo o país colhendo contribuições, conquistando apoios preciosos, reforçando os seus papéis institucionais. O projeto foi reescrito com base nas orientações jurídicas da OAB e absorvendo as sugestões da categoria, aperfeiçoando o dispositivo.
Quase nada se falou sobre isso. E o que é pior: o acordo no plenário da Câmara Federal montou uma estratégia que derrubaria o projeto da forma como ele estivesse, não importando se por bem ou por mal. A oposição, por diversas vezes, pediu a degola do projeto ameaçando trancar a pauta das votações – apelo que o governo e sua base parlamentar atenderam com passividade bovina.
Como relator para a matéria indicaram um deputado que é proprietário de rádios no Rio Grande do Sul, e mesmo assim aceitou-se a sua condição de julgador isento. Com a relatoria acertada, o projeto tramitou com rapidez assustadora – em quatro meses foi do protocolo ao plenário! Com a rejeição da matéria e só a voz isolada – da bancada do PC do B –, o projeto foi derrotado.
Segundo plano
É uma pena que o governo tenha feito um acordo como aquele. Pena que nem mesmo o partido situacionista tenha balizado a proposta, e que haja gente que venha parabenizando José Carlos Aleluia (PFL-BA), José Sarney (PMDB-AP) e Thomaz Nonô (PFL-AL) por suas posturas. Justo eles que nunca tiveram nem terão compromisso com o jornalismo ou os jornalistas.
Pena que se tenha lido por aí tantos se regozijando com essa derrota. Pena que houvesse tanto rancor nos debates e que o preconceito tenha vencido. É uma pena que tenhamos perdido a chance histórica para discutir seriamente e com vagar temas como a propriedade cruzada e a concentração dos meios de comunicação. Um conselho profissional não é uma panacéia, claro, mas ele permite trazer à tona debates como esse. De que forma colocaremos isso em pauta, agora? Tão cedo será difícil.
O episódio desse projeto de lei repete uma seqüência de manobras políticas e corporativas do patronato que já vimos antes. Foi uma luta titânica aprovar a lei da TV a cabo. Foi um esforço sobre-humano fazer funcionar o Conselho de Comunicação Social. E mesmo assim, ele só foi empossado 14 anos depois de sua inclusão na Constituição e totalmente desfigurado, enfraquecido em seu poder e alcance.
Tem sido uma batalha desgastante mudar as regras para as concessões de radiodifusão. A democratização dos meios fica em segundo plano, o controle social da qualidade da programação das TVs é rotulado de censura.
Muita paciência
Com a derrota no Congresso Nacional, há muitos perdedores. Muitos já gargalham com o revés sofrido pela Fenaj, mas a perda é maior do que isso. Perdem os setores da categoria que trabalhavam pela instituição de uma entidade que iria ampliar a organização dos jornalistas; perdem os jornalistas que, por mais tempo, terão um código de ética pouco eficaz e constantemente desrespeitado; perde o governo, que capitula a uma política mesquinha, fisiologista e contrária ao que tanto apregoou; perde a sociedade que vê diluir-se um instrumento que reuniria denúncias dos abusos da mídia e que poderia intervir positivamente nessas querelas.
Vencem as empresas, que não suportam regras no mercado; vencem os parlamentares que, se não são patrões na mídia a ela estão ligados umbilicalmente e a ela servem.
O episódio expõe com evidência cristalina uma categoria dividida, e ainda longe da maturidade que lhe permitiria auto-regular-se. O episódio mostra que as regras no Congresso não mudaram com a chegada do PT ao poder. O episódio nos permite ver – pelos próprios meios de comunicação – como a mídia exerce o poder com força, arrogância e sem qualquer sombra de crítica.
Historicamente, a curta saga do CFJ já foi vivida por outras categorias profissionais. Os advogados, por exemplo, patinaram por quase cem anos para criar a sua OAB. Em 1843, não conseguiram institui-la e surgiu o Instituto dos Advogados Brasileiros. Só no final de 1930, Getúlio Vargas chancelaria a criação da OAB. O mais caçula dos conselhos – o de Educação Física – também não saiu de uma cartola, e seu surgimento dependeu muito dos profissionais da área que ainda tentam afastar oportunistas do mercado e preconceitos da mentalidade comum.
Entre os jornalistas não pode ser diferente. É preciso paciência, unidade e nitidez de propósitos. Um conselho para os jornalistas será uma fundamental conquista para a organização da classe e para a consolidação de um padrão ético de conduta. Pena que tenhamos perdido essa chance histórica agora.
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Jornalista e professor responsável pelo Projeto Monitor de Mídia (http://www.univali.br/monitor)