Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cobertura do caso Nardoni

Leio diariamente dois jornais, a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Leio-os na versão internet. Acompanhei o julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá pelos dois jornais, pelos respectivos sites e ainda pela Globo News e o site G1 que, como se sabe, é da Globo.


Acredito, como Alberto Dines, o ex-ombudsman da Folha Carlos Eduardo Lins da Silva e vários outros, que o futuro da mídia impressa está em fornecer textos que a pressa da internet ou do audiovisual não permite proporcionar. No entanto, para quem tem esta esperança, a cobertura do caso decepcionou. A melhor cobertura – das que citei – foi a da Globo News.


O Estado efetuou uma cobertura neutra, correta. Já a Folha errou, ao anunciar que a promotoria apostaria na ‘emoção’. Isso não se comprovou. Assim teria sido se colocassem fotos tamanho gigante da menina (lembro um caso, na década de 1990, em que isso aconteceu; adianto: isso é eticamente inadmissível).


O eixo da atuação do Ministério Público foi científico. Apresentou provas sérias. Parte delas comprovava que o sangue era de Isabella Oliveira (não quero usar o sobrenome do condenado por matá-la), o que era óbvio. Mas também se demonstrava onde fora atacada, de que forma morrera, enfim, retraçava sua via crucis nos últimos minutos de vida. Como além disso se mostrou que o sangue do chão fora lavado, e se provou que o réu se tinha debruçado na janela com um peso de pelo menos 25 kg, o conjunto de elementos científicos apontava de maneira firme contra o pai.


Fenômenos distintos


Ora, os dois jornais dispõem de editorias e/ou colaboradores científicos de alto nível. Teriam tudo para expor e discutir isso a fundo. Nenhum o fez. Já a Globo News e a própria TV Globo, sim. O que se poderia contestar na cobertura da TV foi que ela entrevistou a própria perita que atuou no caso e depôs como testemunha. Ela, aliás, disse que era a única pessoa, no estado de São Paulo, capaz de efetuar os testes decisivos sobre a presença de sangue. Melhor teria sido procurar um perito em outro estado. Mesmo assim, a televisão se saiu bem.


Em suma, tivemos duas cenas. Uma estava fora da sala do júri. Era a multidão pedindo a condenação e, depois, festejando-a. Isso é espetáculo, sim, com todos os seus problemas. Mas havia outra cena, que era o julgamento. Seus principais personagens, jurados e testemunhas, estavam confinados. Não podem ter sido afetados pelo espetáculo externo, posto que não viam televisão, não ouviam rádio, não recebiam mensagens.


Ora, o problema é que a maior parte das críticas de órgãos da mídia ao julgamento se voltou contra seu caráter de espetáculo – isto é, contra o que estava fora da sala. Isso tem importância social inegável. Mas não afetou o veredicto, pelo menos não durante o julgamento. Mesmo a teatralidade dos advogados, de acusação e defesa, parece ter sido comedida e irrelevante. Esse foi outro equívoco da imprensa, que evocou grandes julgamentos do passado com sua retórica. Parece que isso não funcionou, nem foi usado. No correr do julgamento, o decisivo foram as provas científicas.


Essa foi uma grande novidade: ‘nunca antes na história deste país’, creio eu, a ciência foi tão importante para uma decisão do júri. Os jurados são juízes leigos, isto é, pessoas que não conhecem os aspectos técnicos da lei. São chamados a decidir sobre o fato, não sobre a lei. Normalmente, o contraste é entre o especialista em leis e o leigo em leis. Aqui, o contraste foi entre o especialista em ciência e o leigo em ciência. O decisivo foi traduzir a ciência em linguagem comum. Os especialistas fizeram isso bem para os jurados, parece. A imprensa poderia ter feito o mesmo para nós, leitores.


Acho uma pena que a novidade da ciência no júri tenha sido tão pouco discutida. Porque o lado do espetáculo era de esperar. Mas é como se quem não aderiu ao espetáculo (extramuros) reduzisse o julgamento no fórum de Santana (intramuros) a um espetáculo. É misturar dois fenômenos diferentes.


O que mudou


A Globo News fez maratonas com advogados, juízes, promotores, discutindo o assunto. Deu a cobertura mais longa e especializada – aquela que a imprensa diária, com seu tempo mais lento do que a instantânea, pode e deve proporcionar. É pena que o canal de notícias da Rede Globo não tenha recorrido a cientistas sociais, pelo menos ao que vi: o Direito é cada vez mais tema das ciências humanas, havendo trabalhos e centros que pesquisam o crime e sua punição. Mas, por mais que o interesse do telespectador possa estar no sensacionalismo, as entrevistas não foram sensacionalistas.


É curioso que também a cobertura dos sites dos jornais tenha sido limitada. Temos que distinguir o jornal impresso do respectivo site. Folha e Estado impressos, por exemplo, mal mencionam o Big Brother. Mas, na Folha Online, durante os três primeiros meses de cada ano, entre as cinco notícias mais acessadas estão constantemente duas, três, quatro do BBB. Na quarta-feira (31/3), as cinco mais acessadas eram todas do Big Brother! Não tenho a menor vontade de que a edição impressa detalhe esse show.


Mas o problema, lendo certas críticas ao caráter de ‘espetáculo’ do julgamento Nardoni, é que parecia que o julgamento teria sido espetacularizado como um BBB. Não é verdade. Não era um jogo, mas o julgamento de um crime horrível, e a versão vitoriosa a respeito se baseou em provas científicas, não no clamor ensurdecedor das ruas nem na oratória do promotor ou da defesa. Isso é novo e importante.


Fico à vontade para criticar o excesso de ênfase no espetacular porque eu mesmo escrevi muito sobre a redução da vida social a espetáculo – no Antigo Regime, na democracia marqueteira, na mídia. Mas, por isso mesmo, dizer que algo é espetáculo não é uma condenação, é uma constatação: trata-se de uma linguagem, que em certos casos reduz o público (bem comum) a público (platéia) e, portanto, reduz a capacidade de decisão da sociedade; mas, em outros, é uma forma legítima de transmitir o social. E não se pode usar automaticamente a acusação de ‘espetáculo’, na falta de argumentos melhores, para desqualificar o outro. Paradoxalmente, acusar o julgamento de espetacular foi uma forma fácil de não debater o caráter científico das provas que estavam presentes.


Enfim, resta tempo. Um suplemento dominical dos grandes jornais ou uma revista poderia ainda fazer um balanço do uso da ciência nos julgamentos. Poderia chamar cientistas, repórteres científicos, cientistas sociais que conhecem o júri, e discutir tudo. Espero que isso ainda aconteça.


Pelo menos duas coisas mudaram e merecem reflexão: o júri não é mais dominado pela retórica dos grandes advogados, e a ciência apareceu no tribunal.

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Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, autor de A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil e A universidade e a vida atual – Fellini não via filmes, entre outros