Os observadores que acompanham com seriedade a cobertura do processo político-eleitoral pela grande mídia brasileira são testemunhas de um momento especial. A poucos dias das eleições gerais, raramente parece ter havido situação tão próxima da unanimidade, fazendo submergir a pluralidade e a diversidade que deveriam caracterizar a mídia numa democracia liberal.
De forma implícita ou explícita, editoriais, colunas e os “enquadramentos” predominantes na cobertura da grande mídia não deixam dúvida sobre sua posição política (aliás, nem mesmo o juiz que preside o Tribunal Superior Eleitoral). No entanto, apesar de sucessivos “escândalos políticos midiáticos” (John B. Thompson), a maioria da população brasileira, a se levar em conta o que hoje indicam as pesquisas, insiste em contrariar os “formadores de opinião”, pelo menos no que se refere à avaliação do atual governo e à reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Esse flagrante “descolamento” entre a posição dominante da grande mídia e a maioria da população tem provocado dois tipos de reações importantes: a primeira, de inconformismo – geralmente acompanhada de uma desqualificação dos eleitores – e a segunda, de radicalização de posições.
Expressões satanizadas
Editores, chefes de redação, colunistas e analistas políticos ignoram perigosamente que, segundo a Constituição de 1988, constituímos uma república federativa e um Estado democrático de direito no qual “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.
Um deles escreveu: “É possível eleger-se à revelia da classe média e dos formadores de opinião, mas não é possível governar sem eles. O povão elege, mas não dá governabilidade”. Além disso, tentam construir uma falsa contradição entre o que chamam de “opinião pública” e a vontade popular. Dessa forma, antecipam graves turbulências caso se confirmem as intenções de voto para a eleição do presidente da República em 1º de outubro.
Na verdade, esses jornalistas – que se consideram “formadores de opinião” – continuam a escrever/falar como se a “opinião pública” fosse igual à sua própria opinião privada. E mais: como se sua opinião devesse constituir um tipo de poder capaz de exercer o controle da vontade popular.
O “terceiro turno” de crise que anunciam é uma quase chantagem que indica a continuidade de uma cobertura política adversa que, parece, só terminará quando conseguir prevalecer sobre a vontade popular.
Já a radicalização de posições fica evidente (infelizmente) quando até mesmo expressões como “democratização da comunicação” – que teria aparecido em suposto documento que seria objeto de discussão para possível incorporação como política pública no programa de um eventual segundo governo Lula – passa a ser satanizada sem mais como se escondesse, em si mesma, o germe autoritário e antidemocrático.
Preocupação crescente
Não seria legítimo e democrático propor a democratização da comunicação em um país onde, apesar da Constituição determinar a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão, existe uma esmagadora hegemonia do sistema privado?
Onde não há uma rede pública de comunicação capaz de oferecer uma alternativa real aos ouvintes e telespectadores?
Onde a mídia privada nacional é historicamente oligopolizada por ausência de regras que impeçam a propriedade cruzada dos meios?
Onde as oligarquias regionais e locais não só controlam a mídia em seus estados, mas controlam também tudo o que a ela se refere – inclusive as concessões e as renovações de concessões – no Congresso Nacional?
Onde para se ter acesso aos canais públicos (ou estatais) da TV a cabo, o “público” tem que pagar novamente a uma operadora privada?
Onde o quase pensamento único midiático está longe do policentrismo recomendado pelos mais respeitados pensadores liberais?
Onde o direito à comunicação – e não somente à informação – ainda é uma utopia distante com a qual sequer sonha a imensa maioria dos excluídos nunca representados na mídia?
O resultado desse inconformismo e dessa radicalização tem gerado uma crescente preocupação entre pessoas e instituições responsáveis, que pensam o país para além de seus interesses privados e imediatos.
Setor central
O que acontecerá depois das eleições? A se confirmar a reeleição do presidente Lula, chegaremos a um impasse na cobertura política do governo à la Venezuela? Se for outro o vencedor, continuarão excluídos da formulação das políticas públicas do setor os atores que acreditam que “um outro mundo é possível” nas comunicações? A quem interessa esses caminhos, ambos antidemocráticos?
Passado o momento eleitoral, é preciso que aqueles poucos com estatura, legitimidade e liderança tomem a iniciativa e promovam algum tipo de ponte entre os principais atores – individuais e institucionais – do setor.
Não se pode mais adiar a construção de uma agenda mínima de pontos negociáveis capaz de conduzir a algum tipo de entendimento, indispensável por duas razões básicas. Primeiro, para que o novo governo – seja ele qual for – tenha condições mínimas de governabilidade. E segundo, para que se possa servir ao interesse público avançando nas políticas de um setor tão central na nossa sociedade como o de comunicações.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)