A coerência crítica foi um dos maiores legados deixados por Eduardo Galeano (1940-2015). O escritor e jornalista uruguaio sempre esteve atento para o excesso discursivo e a falta de atitude que marcam, perigosamente, as relações humanas com as estruturas de poder. Na coletânea de artigos intitulada O teatro do bem e do mal (2002), Galeano construiu reflexões contundentes e lúcidas, demonstrando as imposturas sociais e mercadológicas que costumam ferir a ética frontalmente. Honrando a tradição do espírito crítico, o autor notabilizou-se pelo lirismo engajado com o qual defendeu seus pontos de vista com exímia categoria e habilidade. Galeano estampou em seus artigos a falta de compromisso de muitos com a verdade enquanto sustento autêntico da liberdade. Por exemplo, trazendo à baila a propaganda, motor por excelência da engrenagem econômica e difusora dos valores sociais alinhados com a promoção do consumo, o escritor e jornalista uruguaio apresentou parecer ousado: “Hoje em dia, a publicidade tem a seu cargo o dicionário da linguagem universal. Se ela, a publicidade, fosse Pinóquio, seu nariz daria várias voltas ao mundo”.
Eduardo Galeano demonstra como o poder vem sendo mal canalizado como manifestação autoritária, perdendo, assim, chances históricas de representar uma fonte energética de caráter coletivo voltado para a transformação positiva do mundo. Revela o autor com precisão opinativa e informativa: “Desventuras da palavra, impunidade de seus estranguladores: o poder predica com o exemplo. Jamais o poder faz o que diz, ou diz o que faz, ou cumpre o que promete.” O jornalista e escritor uruguaio exemplifica a tese em questão, com os seguintes dados (assustadores e realistas, por sinal!): “Em 1974, os países desenvolvidos se comprometeram a destinar 0,7% de seu Produto Interno Bruto à ajuda aos chamados ‘países em desenvolvimento’, o que vinha a ser algo assim como minúscula compensação pela quantidade de suco que lhes espremem. Hoje um juramento, amanhã uma traição, como diz o tango: em 1977, a ajuda chegou apenas a 0,2%. Nesse ano, a diferença entre o dito e o feito foi de 120 bilhões de dólares. Segundo o economista espanhol Manuel Iglesia-Caruncho, a diferença entre o prometido e o cumprido, somando-se somente os últimos doze anos, bastaria para pagar toda a dívida externa do chamado Terceiro Mundo.”
O império da mentira justifica também guerras infundadas. No cenário predominantemente bélico em que vivemos, Galeano, mais uma vez, fez observações dignas de profunda atenção pública: “Num paradoxo do progresso tecnológico, a cada dia estamos mais informados e mais manipulados. Depois das duas guerras contra o Iraque, que continua sendo bombardeado, foi a vez da Iugoslávia: outra manivelada na máquina que vende armas e mente pretextos”. Na aparência, “missão humanitária”; na essência, “limpeza étnica” – assim caminha a violência bárbara, sintetizada pelo escritor norte-americano John Reed, citado pelo autor uruguaio: “As guerras crucificam a verdade.” O cinismo generalizado também toma conta do mercado, financiando falcatruas que inviabilizam qualquer atitude honesta como fator sistêmico de qualidade corporativa. Com destemor jornalístico, Galeano ilumina a opinião pública, com discernimento e denúncia fundamentais: “Aquele John Reed, o escritor, tinha sido amigo de Pancho Villa. Oitenta anos depois, outro John Reed é diretor-executivo do Citibank, e o Citibank é amigo de Raúl Salinas, o voraz irmão de quem fora, até poucos anos antes, presidente do México. ‘Temos uma visão de Gargântua’, diz John Reed, o de agora. Aspiramos ter um bilhão de clientes. Um bilhão de amigos. Por essas coisas de amizade, o Citibank deu um sumiço em cem milhões de dólares de Raúl Salinas provenientes do tráfico de drogas. Em nossos dias, o desaparecimento de pessoas é uma especialidade militar, ao passo que os banqueiros se ocupam do desaparecimento do dinheiro.”
As potências raciocinam bombardeando
Para o autor, vivemos uma “ditadura financeira internacional” cuja ordem de funcionamento se alimenta vorazmente da “obrigação de fazer vista grossa para os manobrismos do mundo dos negócios”. Nem a beleza, nem a justiça ficam livres da contaminação nefasta. Galeano tece uma espécie de poética do desencantamento para liricamente ilustrar os tempos sombrios que se avolumam tragicamente: “A beleza é bela se pode ser vendida, e a justiça é justa quando pode ser comprada. O planeta está sendo assassinado pelos modelos de vida, assim como nos paralisam as máquinas inventadas para acelerar o movimento e nos isolam as cidades nascidas para o encontro. As palavras perdem sentido, enquanto perdem sua cor o mar verde e o céu azul, que tinham sido pintados por gentileza das algas que lançaram oxigênio durante três bilhões de anos.”
Abrimos mão do milagre relativo à transformação do verbo em carne para esvaziar a palavra do seu princípio ativo. Com a verdade nocauteada covardemente pela mentira, a humanidade permanece alimentando sua sina pré-histórica. Nesse sentido, Galeano inteligentemente dialoga com a famosa cena que abre o clássico filme 2001, uma odisseia no espaço (1968), dirigido por Stanley Kubrick: “Quem fica com a água? O macaco que tem o porrete. O macaco desarmado morre de sede.” Armados até os dentes, condenamos a leveza à cova dos leões. A respeito, Eduardo Galeano foi mais uma vez perspicaz: “As potências donas do planeta raciocinam bombardeando. Elas são o poder, um poder geneticamente modificado, um gigantesco Frankenpower que humilha a natureza: exerce a liberdade de transformar o ar em sujeira e o direito de deixar a humanidade sem casa; chama erros aos seus horrores, esmaga quem se antepõe em seu caminho, é surdo aos alarmes e quebra o que toca.”
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários