Extrema a lucidez do texto de Venício A. de Lima (‘A privatização da censura’, remissão abaixo) acerca do problema das reações à idéia de censura, conforme a sua origem. Com efeito, o problema da liberdade de expressão e manifestação do pensamento como direito de caráter extrapatrimonial oponível ao poder público torna-se de mais fácil visualização, e é precisamente aí que entram as manifestações contrárias à criação de um Conselho Federal de Jornalismo.
Entretanto, a possibilidade de se estabelecer uma censura por parte do titular do poder de controle sobre os meios de comunicação continua a ser um desafio para os que pretendam operacionalizar tal prerrogativa constitucional. Por vezes, a indistinção entre o que é mera ‘opinião’ e o que é ‘narração dos fatos’ conduz a que esta seja prejudicada em prol da orientação da empresa. Entretanto, um dos expedientes mais aptos a possibilitarem tal censura, de acordo com o § 5º do Artigo 220 da Constituição Federal, poderia ser mais efetivamente combatido, caso se compreendesse que a concentração da mídia não se assemelha – insisto neste ponto, sempre e sempre – à concentração de outras atividades econômicas a que se refere o § 4º do Artigo 173 da Constituição Federal.
Recorde-se que a propriedade traduz o poder sobre a coisa, exercitável contra todos, de dela usar, gozar, dispor e reavê-la de quem injustamente a possua – este último, evidentemente, só aplicável a coisas corpóreas, passíveis de posse –, como o dizem todos os bons manuais de direito civil. Tal poder se presume pleno e exclusivo, o que implica dizer que quantos tenham que se relacionar com o proprietário terão de permitir que este faça concretizar tudo o que manifeste a sua melhor conveniência no uso, gozo e disposição da coisa. Não apenas decidir o que e onde publicar, como também a quem empregar, a quem deixar de empregar, a quem despedir.
Muito bem. Uma vez que não haja uma efetiva pluralidade de canais por onde se possam veicular sejam as opiniões, sejam as narrações, a conveniência de quem detenha o comando das empresas de comunicação social é que se torna a soberana não apenas da tábua de valores a ser adotada, como também do que se deva entender por verdade ou mentira. Em casos de indivíduos que foram devida ou indevidamente crucificados mediante campanhas jornalísticas intensas, das quais a única conclusão segura que se poderia tirar seria o caráter leviano da atuação midiática: teria havido falta com os deveres de investigação quando da realização da campanha ou a retratação se voltaria a atender a interesses menos confessáveis?
Luciano Martins Costa, a este propósito, disse, com toda a propriedade: ‘A partir de premissas que vivem nos ossos da imprensa, suspeitas transmudam-se rapidamente em sentenças condenatórias, projetos morrem antes da primeira leitura, especuladores bem relacionados se transformam em oráculos, oportunistas se arvoram em intérpretes do pensamento nacional. A moléstia se espalha com a rapidez da comunicação eletrônica, e beiramos enfim a circunstância de uma imprensa que, após haver escolhido a ligeireza como estratégia, perde aos poucos a capacidade de refletir a sociedade e ajudá-la a se pensar, e acaba por se tornar agente da irreflexão’ (‘Debate à beira da irracionalidade’).
Como sustentado por Venício A. de Lima, ‘não é segredo para ninguém que a ‘indústria das comunicações’, apesar de crises financeiras localizadas, se transformou em um dos principais negócios das últimas décadas. E exemplo de concentração da propriedade no mundo globalizado (‘sinergia’, na linguagem dos CEOs), reduzida a alguns megagrupos privados que tendem cada vez mais a controlar o que vemos, ouvimos e lemos. Basta olhar ao redor de nós mesmos: uns poucos grupos familiares-empresariais, alguns já associados a megagrupos multinacionais, praticamente controlam as comunicações no Brasil’.
O juiz e sua sentença
Ou alguém negaria isto? Alguém ousaria dizer, hoje em dia, que os grandes conglomerados midiáticos que fazem e desfazem governos estariam na mesmíssima situação que os pequenos jornais dos tempos heróicos do jornalismo, que volta e meia tinham que se haver com os censores oficiais que os ‘empastelavam’? E, contudo, não estou a defender a instauração da censura prévia por parte do poder público – quem conheça o meu pensamento não me imputará, com toda a certeza, tal postura. O que estou a procurar demonstrar é o papel que a concentração midiática assume, no sentido de proceder à conformação de corações e mentes.
Não há senão unanimidade entre os meios de comunicação no que diz respeito a verberar a ‘violação da lei’ por parte de movimentos como o MST e outros que se lhe assemelhem e a enaltecer o desatendimento de ‘leis injustas por natureza’, como se pode verificar no que tange à burla à proibição dos transgênicos. A piedade manifestada pelos garimpeiros mortos pelos cintas-largas em Rondônia e a tolerância com o diuturno envenenamento da água – conseqüência necessária do garimpo – que abastece as aldeias próximas, tratando, inclusive, como burocracia injustificável a exigência posta constitucionalmente para a autorização da mineração em terras indígenas também é uma constante. Quando se discutem valores, a procura de um referencial objetivo é o que mais angustia.
Washington Peluso Albino de Souza, professor-titular da Universidade Federal de Minas Gerais, neste sentido, recorda: ‘Uma das grandes preocupações que nós temos com ela [a justiça] hoje, muito grande em literatura jurídica, é precisamente o problema do juiz com a sua sentença. Um professor jovem da Faculdade de Direito, professor de Direito do Trabalho, acaba de publicar um artigo na nossa revista dizendo o seguinte: ‘o juiz claudica’, e ele é um juiz! Diz ele: ‘o juiz tem preconceito’, e ele é juiz! Então, quando chega naquele momento em que entra na formação pessoal, cultural, o juiz cai em si com sua própria cultura, e às vezes a visão que ele tem de sua própria cultura é preconceitual para o que a sociedade está pedindo’ (‘Direito Econômico: evolução teórica, aplicação prática e perspectivas no contexto da globalização’. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 24, n. 54, p. 19, nov 2001).
Concepção não-unívoca
Isto não é mal falar do Judiciário, mas sim colocar uma questão que atinge a quantos tenham de valorar – julgar – situações que se lhes apresentem: a influência da formação pessoal na hora do julgamento, do juízo. O que torna um sistema de valores melhor que o outro? Ou, melhor colocando a pergunta: o que faz com que se opte por tal ou qual sistema de valores? O que faz com que uma ação seja considerada boa e a outra seja considerada má? Qual o referencial? Por que conforme o sujeito ativo ou passivo da violência será esta reprovada, tolerada ou aplaudida? Ou será que não se cairia na metafísica ao se tentar extrair a bondade e maldade da própria natureza das coisas?
Pessoalmente, penso, com Baruch Spinoza, discípulo de Descartes no que tange à filosofia e de Hobbes quanto à teoria política, que nada pode ser considerado bom ou mau, belo ou feio, justo ou injusto, a partir da sua própria natureza. Aí então vamos tentar lançar mão do critério do útil. Muito bem. Só que mesmo o útil não está infenso a variáveis subjetivas. Dificilmente se poderá demonstrar a quem luta para obter alimentação a utilidade de se construir uma base para lançamento de foguetes ou de se investir – para ficar em algo que, pelo menos para mim, se mostra imprescindível – no desenvolvimento tecnológico. As próprias noções de ‘progresso’ e ‘retrocesso’ não são infensas a referenciais ideológicos, quer porque nem sempre haverá consenso na qualificação das situações como progresso ou como retrocesso, quer porque nem sempre a idéia de progresso terá em si carga positiva, porquanto em determinados setores respeitáveis do conhecimento – o direito aplicado pelos tribunais, por exemplo – a preservação da tradição é o caminho preferível, como se pode ler nos clássicos Carlos Maximiliano, Rubens Limongi França, Vicente Ráo e tantos outros.
No âmbito da polêmica monetaristas/estruturalistas em torno dos modelos de desenvolvimento, em sua tese de doutoramento apresentada à Universidade de Coimbra, António José Avelãs Nunes ilustra a ausência de uma concepção unívoca do tema: ‘Os estruturalistas rejeitam a visão rostowiana do processo de desenvolvimento – pressuposta nos modelos de inspiração neoclássica e mesmo nos de inspiração keinesiana – como um processo linear de evolução, ao longo de fases sucessivas, pelas quais teriam de passar todos os países. Por elas passaram os atuais países capitalistas desenvolvidos, por elas terão de passar, a caminho da industrialização e do desenvolvimento, os países em desenvolvimento. Ao rejeitarem essa idéia de um ‘curso normal’ do processo de desenvolvimento, comum a todos os países, os estruturalistas rejeitam igualmente o entendimento de que o subdesenvolvimento e o desenvolvimento são, historicamente, meras fases sucessivas da evolução linear de sociedades nacionais, consideradas sociedades homogêneas, no plano interno, e como entidades isoladas, no plano internacional. Desenvolvimento e subdesenvolvimento são considerados como aspectos inter-relacionados e simultâneos de um comum processo histórico: a evolução do sistema capitalista mundial’ (‘Industrialização e desenvolvimento – a economia política do modelo brasileiro de desenvolvimento’. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. 24/25, p. 236-237, 1982, suplemento).
Canais fechados
O economista alemão Werner Sombart chama a atenção para o fato de que a própria idéia de transcendência, num determinado momento, passou a ser considerada como um empecilho ao desenvolvimento do mercado, a ser removida porque no campo de batalha concorrencial os escrúpulos seriam fonte de hesitação na escolha das estratégias aptas a permitir um êxito imediato, pois poderiam elas determinar o destino da vida do agente após a morte. Não é casual que a ausência total de escrúpulos seja considerada uma das virtudes cardeais no capitalismo (El apogeo del capitalismo. Trad. Vicente Caridad. México: Fondo de Cultura Económica, 1946, v. 1, p. 39-40).
Poeticamente, Shakespeare pôs na boca de Hamlet: ‘E assim a consciência faz covardes de nós todos’. Esta, em suma, a discussão que me parece mais relevante, porque se trata de perguntar em nome de que o homem merece – ou não merece – perpetuar-se. Ou se a vida é, como pensava Macbeth, uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota, não significando nada e, neste caso, não valeria a pena, sequer, pensar na sobrevivência da humanidade. A eliminação de um ser humano poderia, neste particular, guardar a mesma importância que a eliminação de uma barata, ou, até, ser menos grave, porque as baratas não ficam nestas especulações acerca do porquê de viverem, simplesmente vivem. Mas esta discussão acaso seria posta, quando as posições de poder se consolidam pela idéia segundo a qual as relações entre as pessoas traduzem a expressão da própria natureza das coisas?
E, com isto, vê-se que, realmente, a possibilidade de se abrirem os canais para que todos tenham a condição de ser ouvidos ainda está muito longe, e só o que se mostrar conveniente, efetivamente, será veiculado. E, mesmo que se veicule alguma matéria que adote posicionamento diferenciado, tome-se o cuidado de se enquadrar o respectivo autor, para que seus posicionamentos sejam considerados indignos de qualquer cogitação.
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Advogado em Porto Alegre, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais