Da Folha de S.Paulo de domingo (10/12)): ‘O leitor Mário Henrique Ditticio sugere que os jornais informem exaustivamente em suas reportagens que os acusados são inocentes até prova em contrário. É uma idéia’.
Em sua coluna semanal, o ombusdman Marcelo Beraba comentava carta do advogado Mário Henrique Ditticio, que escrevera o seguinte:
‘Mais uma vez foi explosivo o resultado da combinação entre uma sociedade apavorada que ignora os mais básicos princípios democráticos, um sistema de persecução penal falido e uma imprensa preocupada sobretudo em faturar com a tragédia alheia. (…) Estado e imprensa praticamente destruíram a vida de mais uma pessoa inocente’.
Ambos tratavam do mesmo tema, assim resumido pelo ombudsman:
‘No dia em que sua filha Victória, de 1 ano e 3 meses, morreu, em 29 de outubro, Daniele Toledo do Prado, 21 anos, foi presa em flagrante pela polícia de Taubaté (SP) acusada de ter matado a criança com uma dose de cocaína misturada na mamadeira’.
À semelhança do que já ocorreu tantas vezes na mídia, uma pessoa foi acusada, julgada e condenada sem provas. Na prisão, em Pindamonhangaba, a jovem mãe foi espancada por 19 presas e teve a mandíbula quebrada.
Virou apenas ‘uma idéia’ cumprir a Constituição? Ora, a mídia pode fazer muito mais, principalmente no Brasil, e sobretudo nesses tempos em que os direitos individuais são sistematicamente violados com a cumplicidade, quando não com a ajuda da mídia.
A conclusão do leitor é motivo de remorso para os espíritos esclarecidos e deve servir principalmente de autocrítica para os que, ‘sem querer, querendo’, como dizem os jovens, acabam enredados no cipoal das calúnias: ‘Estado e imprensa praticamente destruíram a vida de uma pessoa inocente’.
Condenados sem prova
A mídia parece seguir a frase atribuída a Goebbels: ‘Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade’. Bem, a expressão ‘mil vezes’ deve ser entendida aqui em seu valor simbólico, mítico, como no caso de outros números, como o três e o sete ou o bíblico ‘setenta vezes sete’, este último com a força do advérbio ‘sempre’. Na verdade, se a imprensa publicar uma calúnia apenas uma vez, a vida inteira da pessoa será pouca para o trabalho de destruição da mentira. Goebbels não usou o número ‘mil’, usou o advérbio ‘suficientemente’, acrescentando em outra passagem: ‘O poder obtido pelas armas é bom, mas é muito melhor obter e conservar o coração das pessoas’.
São Bernardo, que precisava de metáforas concretas para ser entendido por todos, disse que caluniar equivalia a subir ao alto de uma torre e de lá despejar um saco de penas em dia de vento. Ao caluniado restaria a tarefa de juntar todas as penas.
A mídia pode e deve fazer mais em defesa da democracia, do trato justo, da conversa clara. Os manuais de redação poderiam ser mais incisivos na defesa dos direitos básicos de todos os cidadãos e não apenas do cidadão que pode pagar regiamente seus advogados. A mídia não é nenhum 007, não tem licença da Constituição para destruir a honra das pessoas. É só pesquisar os arquivos para encontrar uma verdadeira enciclopédia dos malefícios desta transgressão constitucional básica.
O que é preciso restaurar é o seguinte: não se trata de escolher alguns para poupar. Todos são inocentes até prova em contrário. Esta é a questão: a prova. Sem provas não se pode condenar, embora saibamos que todos os dias alguém é condenado sem provas, principalmente por aquela força que deveria defender a democracia, sem a qual ela não existiria: a imprensa. Fazendo as vezes do Judiciário, a imprensa sentencia a muitos. E quase sempre com penas perpétuas.
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PS – Partiu, sem ser julgado pelos crimes que praticou, o ditador chileno Augusto Pinochet. A morte deu-lhe um ‘pinochetaço’. De mortuis nihil nisi bene (dos mortos, nada, a não ser o bem), recomendavam os romanos. Mas como seguir o provérbio no caso de Pinochet?
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br