Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A cratera não veio do céu

A tragédia nas obras da estação Pinheiros do Metrô, em São Paulo (SP), expôs mais uma vez algo transcendente ao drama humano das vítimas soterradas e de seus familiares. Com a devida vênia, lanço um breve olhar sobre a cobertura oferecida pela mídia, no caso as redes de TV Bandeirantes (Band) e Globo, bem como o jornal Folha de S.Paulo, na perspectiva de entender as razões de determinadas escolhas editoriais, ‘destaques’ e omissões, desde o acontecimento.

Vinte horas antes da tragédia, na quinta-feira (11/1), um alto funcionário do Metrô, ligado diretamente ao Secretário de Transportes Metroviários, José Luiz Portella, fora informado pelo consórcio de empresas dos riscos de desabamento que ameaçavam trabalhadores, usuários da marginal Pinheiros e moradores da região. As empreiteiras garantiram que as providências tinham sido tomadas, mas se o foram não evitaram que vidas humanas fossem perdidas. Uma informação divulgada na Folha (18/1) deu conta ainda de que as empreiteiras tiveram em torno de 10 minutos para alertar a vizinhança, evacuar ruas e arredores. Mas, a Defesa Civil constatou que o ‘consórcio’ não tinha plano de abandono da área adequado.

‘Responsabilidade das construtoras’

Observando a cobertura da TV Globo, nas edições do Jornal Nacional de 12, 13 e 15 de janeiro, destaco alguns aspectos relevantes. Na sexta (12/1), informações desencontradas, estupefação, relatos dos trabalhadores da própria obra e apenas uma informação atribuída à autoridade competente, no caso, o secretário Portella.

No sábado (13/1), um relato jornalístico mais extenso, com apontamentos de possíveis vítimas, a confirmação de que uma van também estava soterrada (com, pelo menos, quatro pessoas a bordo) e as imagens do poço, aberto há um ano, transformada numa cratera de cerca de 80 metros de diâmetro e 28 metros de profundidade.

Um tênue apontamento de causas e responsáveis pela tragédia não incluía o nome de nenhuma autoridade pública (prefeito Gilberto Kassab, do PFL, e governador José Serra, do PSDB), tampouco de quaisquer executivos das empresas que compõe o Consórcio Via 4-Amarela (Norberto Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão, Camargo Correia e Andrade Gutierrez). Um relato factual, no entanto, indicava: é o oitavo acidente nessa linha em pouco mais de dois anos.

Finalmente, na edição de segunda (15/01) do JN, aparece uma fala do governador paulista José Serra: ‘A obra é de responsabilidade das construtoras, inclusive a segurança delas, não há possibilidade de ser de outra maneira. São os construtores.’

‘Consórcio Via Amarela, uma ova!’

Em paralelo, o assunto foi divulgado com sutis diferenças pela Band. Os nomes de empreiteiras e seus proprietários, por exemplo, foram religiosamente omitidos, como na TV Globo. A diferença fundamental entre as duas redes foi a abordagem às autoridades públicas, desde o primeiro dia do acidente, feita pela Band. Na noite de 12/1, o prefeito Kassab deu entrevista ao jornalista José Luiz Datena (Brasil Urgente, Rede Band). Na tarde de segunda-feira (15/1), foi a vez do secretário de Segurança Pública aparecer, ao vivo, no SP Acontece (também da Band).

A tragédia do metrô paulista reforça ainda o papel que jornais diários, como a Folha de S.Paulo, podem desempenhar nessas circunstâncias. A cobertura da Folha, a partir de 13/1, dá conta de um esforço de reportagem crescente, que não poupou nenhuma empresa (o jornal detalhou informações do consórcio, publicou nota oficial das empreiteiras, citou nomes etc.) e que trouxe à luz do dia as figuras públicas da prefeitura e do governo do estado.

Nas capas das edições de 13 a 16/1, há pelo menos seis páginas no caderno ‘Cotidiano’, além da manchete de primeira página. Fontes especializadas, depoimentos de familiares das vítimas e fotos bem editadas compõem um material jornalístico de qualidade. As primeiras informações sobre irregularidades na construção, utilização de material de baixa qualidade para baratear o custo e outros indícios nesse sentido, também foram apontados pelas reportagens da Folha, num tom sóbrio, sereno e essencialmente informativo.

No ciclo de sete dias após a tragédia, o assunto começa a perder fôlego na Folha e, na edição de 19/01/2007, a cobertura se reduz, no ‘Cotidiano’, para duas páginas, além da chamada na primeira (e da manchete nacional). Nessa mesma edição, a colunista Bárbara Gancia publica texto com o sugestivo título: ‘Consórcio Via Amarela, uma ova!’, no qual contesta a imputação de culpa ao governador José Serra. Diz Gancia: ‘O nome da cratera é buraco da Odebrecht, da OAS, da Andrade Gutierrez, da Queiroz Galvão e da Camargo Correia.’

O percurso do acidente

É da colunista Maria Inês Dolci, em artigo publicado na Folha (16/01/2007, p. C2), a pertinente observação: ‘Vidas perdidas não se repõem. Mas o respeito com quem sofreu perdas irreparáveis, humanas ou materiais, faz parte da trajetória de um país minimamente decente’. A ‘cratera paulista’, obviamente, não caiu dos céus nem foi produzida pelas chuvas de verão.

A destacar, na cobertura, é o enquadramento baseado na presunção de inocência, seletivamente cuidadosa no que se refere às mega-empreiteiras – cujos nomes foram acintosamente omitidas do noticiário na TV. É o que se espera ver, sempre, em qualquer circunstância: afinal, este princípio é uma conquista da civilização consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (e copiada em centenas de Constituições de inúmeros países). Mas, a obra tem empresas responsáveis e esta cratera, definitivamente, não é obra de São Pedro ou de meteorito errante.

A esperança de elucidar o caso está depositada nas mãos do Ministério Público e dos jornais diários que cumprirem seu papel básico de investigar e jogar luzes sobre o entorno das relações contratuais entre público e privado, qualidade do material utilizado na construção daquela via pública, consistência do projeto e papel que os órgãos públicos paulistas envolvidos desempenharam no episódio – antes, durante e depois do início das obras. Afinal, a julgar pelos acidentes anteriores, não se trata de um ‘acidente de percurso’, mas do percurso do acidente.

Quanto à mídia, restam duas perguntas: se as autoridades públicas de São Paulo (prefeito e governador) fossem de outro partido (PT, PSB ou PMDB, por exemplo), como teria sido o ‘enquadramento’ da cobertura? Que tipo de compromisso comercial é este que subjuga o interesse público e justifica tamanha omissão, no caso das TVs, de sequer citar as empresas que fazem parte do Consórcio?

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Jornalista, doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente e coordenador do curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC