Numa época complexa para o governo, com denúncias por parte da imprensa contra altas autoridades econômicas, foram apresentados dois projetos de lei à sociedade. Um trata da criação do Conselho Federal de Jornalismo, (CFJ) – órgão que a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Federal de Medicina é destinado à fiscalização e normatização do exercício do jornalismo. O outro trata de uma política de incentivo à produção audiovisual. A imprensa mesclou os dois temas como sendo uma forma de o governo em controlar a liberdade de expressão no Brasil.
Esta leitura, creio, é descabida para os dois projetos. A reação dos meios de comunicação tem um caráter corporativista. Sob um discurso de que o conselho cerceará a liberdade de expressão, eles tentam evitar uma fiscalização que em tese seria mais eficaz. Por outro lado, a sociedade precisa de um SOS Imprensa, um Procon da imprensa, um foro que se possa recorrer contra os desmandos do mau jornalismo. Nem por isso, considero que a criação do CFC seja a melhor alternativa para a sociedade nem para os jornalistas.
Veto integral
Durante mais de meio século, os jornalistas brasileiros foram contrários à criação de uma representação corporativa na forma de Conselho Federal ou Ordem. Uma das principais razões desta postura é o fato de que os conselhos regionais e federais representativos são classificados legalmente como autarquias. Ou seja, órgãos estatais vinculados ao governo. Além disso, não se trata de uma instituição representativa dos trabalhadores, mas sim da atividade. Em outras palavras, um Conselho deve representar os interesses das empresas e das pessoas que praticam o jornalismo.
Independência e autonomia diante do Estado eram as principais bandeiras dos sindicatos dos jornalistas brasileiros, que chegaram a abortar, durante o governo do general João Figueiredo, o envio ao Congresso Nacional de um projeto de lei criando o Conselho Federal dos Jornalistas (CFJ). Na ocasião, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) lutava por eleições diretas para o país e para ela mesma.
Os anos passaram, um novo milênio surgiu e a Fenaj luta agora pela criação do CFJ. O carimbo que selou a mudança de postura da Fenaj foi fixado num Congresso extraordinário realizado há alguns anos em Vitória (ES). Este Congresso foi convocado especialmente para debater dois temas: a regulamentação do estágio e a criação ou não de um Conselho.
O principal argumento dos que defendiam a criação do Conselho era dotar a categoria de poderes para fiscalizar o mercado e evitar a atuação dos chamados irregulares, aqueles que não têm registro profissional. Todos queixavam que o Estado, por meio das Delegacias Regionais do Trabalho, era ineficiente na concessão de registros, permitindo fraudes, e inoperante na fiscalização do exercício irregular da profissão – bem como dos abusos patronais, do tipo excesso de jornada de trabalho, não pagamentos de adicionais, recolhimento de FGTS etc.
Os contrários ao Conselho foram vitoriosos tendo em vista a tramitação acelerada de um projeto de lei no Congresso Nacional que transferiria a concessão de registros para a Fenaj. Decidiu-se, então, lutar pela aprovação do projeto, o que ocorreu, mas ninguém contava com o veto integral do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Charlatanismo jornalístico
A derrubada do veto nunca foi alvo de uma real mobilização dos sindicatos e da Fenaj, e ele acabou sendo a centelha para reacender a chama dos que defendiam o CFJ. Técnicos e juristas foram arregimentados e um projeto foi submetido à aprovação em um novo congresso da categoria, desta vez em Manaus, em 2002.
O projeto encaminhado pelo presidente Lula ao Congresso é bastante tímido em relação as pretensões originais. Alegam os dirigentes da Fenaj que ele está na medida do que seria possível diante da correlação de forças atualmente existente. Na verdade, o Conselho, na forma proposta, será muito mais poderoso diante dos jornalistas legalmente habilitados que porventura venham cometer algum deslize, do que contra os charlatões, quer na forma de pessoas físicas ou jurídicas, que praticam ilegalmente o jornalismo. Ou que em nome dele realizam atos ilícitos.
A mudança feita no texto retira, inclusive, os artigos que originalmente detalhavam os casos irregulares que exigiriam a ação reparadora do CFJ. Não há no texto proposto nenhuma punição para o charlatanismo jornalístico. Este alerta se faz necessário pelo fato de que muitos jornalistas e seus sindicatos acreditam que o CFJ irá solucionar os crônicos problemas da profissão.
Contabilidade frágil
Na América Latina existem dois modelos clássicos de organização dos trabalhadores: os sindicatos e os conselhos. Basta uma olhadela nos países vizinhos para verificar o que tem se mostrado mais eficaz.
Na Argentina não há conselhos e os sindicatos de jornalistas, como a UTPBA (União de Trabalhadores de Prensa de Buenos Aires), são fortes. Na Colômbia e Equador os profissionais são representados por conselhos. O padrão do jornalismo lá praticado é sofrível. Na Venezuela convivem as duas formas representativas. Nenhuma tem fôlego suficiente para enfrentar os problemas que culminaram, inclusive, com um dono de TV comandando um golpe de Estado.
É importante que os jornalistas entendam que conselho e sindicato têm missões diferentes. Os conselhos se aplicam mais a categorias onde os profissionais majoritariamente atuam na forma liberal, autônomos, por conta própria. Em relação aos que têm carteira assinada, por exemplo, não podem fixar pisos salariais ou negociar contratos coletivos de trabalho, ou mesmo entrar com um dissídio coletivo. Não podem também entrar com uma ação judicial coletiva em nome da categoria para recuperar perdas coletivas, como as do FGTS, plano Bresser, Collor etc. No projeto de lei do CFJ não há nem mesmo a previsão de competência para definir tabelas de honorários profissionais. Isto continuará sendo uma luta para os sindicatos. Para isso, eles precisam ser fortes, inclusive materialmente.
A tendência é que os sindicatos venham a se fragilizar com a implantação do CFJ. Isso porque a sindicalização é opcional e o Conselho é obrigatório – o projeto do CFJ define como falta grave o não pagamento da anuidade a ser fixada pelo próprio CFJ.
Com a pauperização dos assalariados em nosso país, os profissionais acabam optando em pagar apenas uma das entidades. A realidade mostra que as categorias profissionais que se organizaram por meio de conselhos tiveram suas estruturas sindicais desnutridas. Esses são os casos de engenheiros, advogados, arquitetos, economistas, relações-públicas e de tantas outras.
Sem pagar a anuidade, não será permitido exercer a profissão. Desta forma, muitos pagarão apenas a taxa cartorial compulsória, que em algumas outras profissões ultrapassa os 400 reais, por ano. Esta quantia equivale a, mais ou menos, 50% do piso salarial dos jornalistas aplicado em 18 dos 31 sindicatos de jornalistas do país. Alguém já se imaginou tendo que, num determinado dia do ano, pagar meio salário para continuar a ter direito ao trabalho?
A própria Fenaj, que patrocina o projeto e que conta com 5% de tudo que os sindicatos arrecadam, irá sentir em sua já frágil contabilidade. O mesmo acontecendo com as centrais sindicais e organismos como Dieese e Diap. Nestes dois últimos casos, o prejuízo novamente será dos jornalistas, que ficarão sem os estudos técnicos desses departamentos. Quem não paga, não recebe.
Entidade-fantasma
A outra dúvida é se esta nova autarquia terá condições de sobreviver financeiramente e exercer com excelência sua competência, em especial a fiscalização do exercício profissional. Caberá a ela contratar os fiscais, mão-de-obra bastante cara para atuar em todas as cidades onde exista um jornal, uma TV, uma rádio. Só em rádios, são quase quatro mil estações.
Dinheiro será também o desafio para os novos conselhos regionais. Até a poderosa OAB Nacional se vê obrigada a enviar uma mesada para manter em funcionamento as secções dos pequenos estados. A OAB, porém, além da contribuição dos advogados conta com taxas dos processos judiciais para reforçar seu caixa. Pagam igualmente as anuidades os escritórios de advocacias.
A falta de recursos materiais impede que outros conselhos bem mais tradicionais, como o de Farmácia ou o de Relações Públicas, desenvolvam uma fiscalização eficaz. Faltam fiscais e técnicos. O resultado é que não se consegue fazer com que todas as farmácias brasileiras tenham farmacêuticos. E olhe que eles contam com a exigência legal e a fiscalização da Vigilância Sanitária.
Mas se conselho não é a solução, qual seria? O melhor caminho seria a retomada do projeto vetado por FHC, ou seja, dotar a estrutura sindical da Fenaj dos poderes de conceder o registro profissional e fiscalizar o mercado. Assim, haveria o tão sonhado respeito à regulamentação profissional.
Quanto ao aspecto ético e da qualidade do jornalismo, o mundo nos apresenta várias alternativas. Na Europa, França e Inglaterra trabalham com a existência de conselhos representativos da sociedade para disciplinar os meios de comunicação. Esta talvez pudesse ser uma competência a ser concedida ao atual Conselho Nacional de Comunicação. Na América Latina, vários países adotam o Tribunal de Imprensa. Poderia também alterar as comissões de ética existentes nas Fenaj e nos sindicatos. O que falta a elas é a capacidade legal de punir os exageros, os descaminhos. Isso poderia ser muito bem resolvido legalmente, abrindo inclusive para a participação de setores da sociedade civil. Desta forma o país não ficaria órfão de um foro capaz de coibir os abusos jornalísticos.
O fato concreto é que a Fenaj, criada em 1946 e que participou das lutas pela criação do salário mínimo, pela democratização dos meios de comunicação, contra a censura, contra a ditadura, pela ética na política, corre o grande risco de se transformar numa entidade-fantasma, a exemplo de sua entidade maior a Contcop – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade. Isso, creio, não é o desejo de nenhum jornalista.
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Jornalista, mestre em Comunicação Social pela UnB, foi presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF , vice-presidente da Fenaj, vice-presidente da Federação Latino-americana de Jornalistas (Felap) e vice-presidente da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ)