Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A criminalidade de butique

Em 1940, Edwin H. Sutherland publicou um ensaio na American Sociological Review intitulado ‘White-Collar Criminality’ no qual tratava de um tipo de criminalidade até então muito pouco discutida na criminologia: a criminalidade econômica, praticada por pessoas ocupantes de posições sociais de prestígio. A expressão ‘colarinho branco’, alusão às camisas usadas pelos empresários, tornou-se então a marca do diferencial de classe nas ciências penais.

A recente prisão da dona da butique Daslu e a conseqüente reação dos setores hegemônicos da sociedade e da mass media aos supostos excessos da Polícia Federal é a prova cabal de que há algo muito especial que difere a ‘white-collar criminality’ ou, em tradução livre, a criminalidade de butique, da criminalidade genérica encontrada nas ruas das grandes metrópoles.

Tomemos a nota oficial da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) sobre o caso:

‘A prisão antecipada, sem sentença, seja qual for sua natureza, só pode ter lugar para os infratores perigosos que ameaçam a ordem pública, que causam prejuízos irreparáveis à sociedade e à própria segurança dos processos judiciais.’

A criminalidade de butique não é perigosa? Os criminosos ricos não ameaçam a ordem pública? A sonegação de impostos não causa prejuízos irreparáveis à sociedade? Os empresários não têm maior chance de fugir do Brasil e, com isso, ameaçar a segurança dos processos judiciais? Quem afinal a Fiesp considera um criminoso perigoso? O ladrão de carteiras, de carros, de bancos? Quem é mais perigoso para a sociedade: o ladrão ou o sonegador? Quem se apropria do dinheiro privado ou do dinheiro público?

Segue a nota afirmando que:

‘O combate à criminalidade não pode prescindir do respeito ao Estado de Direito, sendo inadmissível que alguém possa ser preso, ou tenha sua residência, escritório ou empresa violados sem que a segurança de sua prévia culpa esteja evidenciada e que, pior ainda, seja essa prisão realizada de modo extravagante, com exibição de algemas, com publicidade afrontosa, como um espetáculo pirotécnico, expondo o cidadão à condenação pública, para todo o sempre.’

A maior parte da mass media logo aderiu ao discurso da Fiesp e ao choro de Antônio Carlos Magalhães. O jornal Folha de S. Paulo, em editorial no dia 15 de julho de 2005, parafraseou a nota oficial da Fiesp:

‘É evidente, porém, que a chamada Operação Narciso foi conduzida com dispensável espalhafato. É claro que os mandados precisam ser executados, mas há várias formas de fazê-lo. O espetáculo armado não se justifica. Todo suspeito, indiciado ou réu é inocente até o trânsito em julgado do processo e não deve ser submetido a humilhações não previstas em lei, mesmo que elas possam ter o salutar efeito de coibir a elisão fiscal.’

Todos os dias favelas e barracos são invadidos pela polícia sem que ‘a segurança de prévia culpa’ de quem quer que seja esteja evidenciada. Não são estas ações também espalhafatosas? Alguma vez a Fiesp divulgou nota oficial sobre isso?

‘Crimes acessórios’

Todos os dias ladrões e traficantes são presos, algemados e levados à delegacia onde são exibidos em cadeia nacional de televisão para alívio dos ‘homens de bem’. São eles menos inocentes que a dona da Daslu? São menos sujeitos a humilhações por serem pobres?

Na mesma Folha de 15/7, no caderno Cotidiano, Barbara Gancia disparou a pérola:

‘Sejamos realistas: quantos negócios de importados conseguem sobreviver pagando rigorosamente todos os impostos que são enfiados na goela do comércio? Não falo de lojas que pertencem a grandes corporações e são cotadas em bolsa como a Dior, a Tiffany’s ou a Louis Vuitton. Essas andam na linha. Mas será que existe algum comércio desse tipo que pode se dar ao luxo de não ter caixa dois?’

Sejamos realistas também com o trabalhador, D. Bárbara: será que alguém consegue sobreviver ganhando rigorosamente um salário mínimo? Vamos fazer vistas grossas aos sonegadores e aos ladrões, então? É esta sua brilhante conclusão?

O jornal O Estado de S. Paulo, mais cauteloso, procurou ser mais discreto na sua indignação elitista. Para tanto, fundamentou seu editorial do domingo 17 de julho de 2005 na opinião da conceituada advogada Dora Marzo Cavalcanti de Albuquerque:

‘Mesmo após a constatação da sonegação e a definição dos valores que deveriam ter sido pagos, por parte da Receita Federal, afirmou ela, os contribuintes têm a prerrogativa de pagar seus débitos, o que extingue automaticamente a ação penal e, junto com ela, os demais processos por ‘crimes acessórios’, como, por exemplo, o de formação de quadrilha’.

Um juiz arbitrário?

‘Essa é uma previsão da legislação brasileira que vem sendo acatada nas decisões do Judiciário. O entendimento tem prevalecido, inclusive, em julgamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte do país’, concluiu a advogada, cuja opinião é tão mais importante por ter sido sócia do criminalista Márcio Thomaz Bastos até um dia antes de ele assumir o Ministério da Justiça.

Mas se o argumento de autoridade é tão importante para o Estadão, por que não buscaram ouvir o outro lado das opiniões jurídicas sobre o fato? O parecer da ilustre advogada não parece ser pacífico no Supremo Tribunal Federal. Tomemos a ementa da decisão do hábeas-corpus 84.223/RS, julgado em 3 de agosto de 2004, relatado pelo ministro Eros Roberto Grau:

‘1. A suspensão do processo relativo ao crime de sonegação fiscal, em conseqüência da adesão ao REFIS e do parcelamento do débito, não implica ausência de justa causa para a persecução penal quanto ao delito de formação de quadrilha ou bando, que não está compreendido no rol taxativo do artigo 9º da Lei 10.684/03. 2. O delito de formação de quadrilha ou bando é formal e se consuma no momento em que se concretiza a convergência de vontades, independentemente da realização ulterior do fim visado. Ordem denegada.’

E o que dizer do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, que negou liminar em hábeas-corpus ao empresário Antônio Carlos Piva de Albuquerque, sócio proprietário da loja Daslu? Desconheceria ele as intricadas teorias do Direito que beneficiam os sonegadores? Ou seria apenas mais um juiz arbitrário, passando por cima da mais elementar das garantias penais, a presunção de inocência?

Os humanos de Orwell

O que incomoda à maioria daqueles que levantaram suas vozes para defender os direitos da empresária não é propriamente o desrespeito aos direitos do acusado, mas a prisão de alguém de sua classe social. O que incomoda é saber que sonegação de impostos é crime e que, pelo desencadear dos fatos, muitos colegas podem acabar em situação semelhante. O que incomoda é a perda da imunidade penal de uma classe, representada simbolicamente por esta prisão.

Enquanto a mídia se limitava a cobrir as ações policiais em favelas, reafirmando o estereótipo do pobre bandido, a Fiesp nunca se indignou com a ‘pirotecnia’ das reportagens. Nenhuma linha foi publicada nos grandes jornais lembrando a todos que ‘todo suspeito, indiciado ou réu é inocente até o trânsito em julgado do processo’. Bastou os colarinhos-brancos e as roupas de butique fazerem um breve desfile nas delegacias de polícia, para que novos paladinos dos direitos humanos pululassem pelo empresariado e pela mídia.

A criminalidade de butique não incomoda aos ricos, pois não derrama sangue, não se esconde nos morros e, principalmente, não gera medo. Mesmo quando noticiada na imprensa, seus personagens não são marginais, bandidos ou muambeiros. São empresários; quase cidadãos de bem. A criminalidade de butique quase não é crime.

Parafraseando Orwell: todos têm direitos humanos, mas alguns humanos têm mais direitos do que outros.

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Professor de Direito da PUC-Minas, Doutorando (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito, Editor do site www.tuliovianna.org