Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A democracia escancarada

A princípio, o título deste artigo pode parecer estranho a um sítio dedicado à crítica dos meios de comunicação. Mas está longe disso, na medida em que uma democracia vigorosa depende inequivocamente de uma imprensa diversificada e representativa dos vários setores da sociedade. Contudo, é justamente essa diversidade de idéias que não vemos atualmente. Vivemos sob a tutela do pensamento único. E isto se verifica não só na economia, mas também na política e nos meios de comunicação, supondo-se que ainda haja alguma diferenciação entre essas três esferas.

As recentes demissões de Alberto Dines e Jorge Kajuru, em última instância, não deixam de ser mais um reflexo deste contínuo processo de decantação aplicado a qualquer um que possa macular as límpidas águas de nossa democracia. No Brasil, a exemplo do que ocorre na economia atualmente, o poder político e a grande mídia também impõem sua estabilidade e a têm como um valor em si. Qualquer um que porventura venha a abalar esta pseudodemocracia deve ser expurgado, pois seus alicerces são frágeis. E a mídia condescendente sempre serviu como anteparo perfeito a esta débil construção. Mas, embora o Brasil possua suas peculiaridades, as relações cada vez mais arraigadas entre os poderes econômico, político e dos meios de comunicação e seu desserviço à democracia são um fenômeno mundial.

Críticas aos sistemas democráticos em vigor não são nenhuma novidade. Guy Debord, por exemplo, já dizia que a presente ideologia da democracia é a liberdade ditatorial do mercado, temperada pelo reconhecimento dos direitos do homem espectador, e apontava para a intrínseca participação da mídia nesse processo. Mas o que há de novo então? Talvez, o enfraquecimento da fé no sistema – o que pode também se transfigurar no início da mudança. Essa descrença parece vir de parte a parte, tanto da classe governante como dos espectadores-eleitores. Um certo pudor que havia por parte de quem estava no poder mantinha a hipocrisia, mas ao mesmo tempo continha os ímpetos mais destrutivos. Por outro lado, os governados, apesar de muitos terem consciência da real politik, ainda tinham esperanças no sistema. E isso parece que vem acabando.

Apatia universal

O maior exemplo da impudência da classe dirigente parte justamente daquela que se proclama a maior nação democrática do mundo: os Estados Unidos. Sem dúvida, quando Norman Mailer anunciou que Bill Clinton teria sido o último presidente eleito no país, e que a partir de então as grandes corporações não precisariam mais de intermediários, não estava sendo leviano. Não se referia a uma ditadura em seus moldes clássicos, mas ao que estava em curso. Bush foi empossado depois de fortes indícios de fraude no estado governado pelo irmão e impôs uma guerra ao Iraque visando unicamente os interesses de sua cúpula e daqueles que representam: as indústrias armamentista e de petróleo. Soldados americanos foram escolhidos para levar a boa nova, a democracia, ao Iraque.

Depois de bilhões gastos e de milhares de mortos, o que se assiste é tão somente à proteção dos poços de petróleo e o favorecimento em contratos e instalação de empresas americanas em território iraquiano, principalmente as ligadas ao governo. Depois de muito trabalhar em prol de tal política, só agora a mídia americana vem fazer um mea-culpa, e diz que pode não ter sido suficientemente cética em relação a suas fontes. Quem sabe por medo de embarcar na mesma falta de credibilidade que atinge o mundo da política, o que, a longo prazo, poderia ser um desastre para o próprio negócio.

Já do outro lado da urna, o descontentamento é flagrante e agora quantitativo. Em visita ao Brasil, o sociólogo Manuel Castells não só analisou o problema como o traduziu em números, baseado em pesquisas do Instituto Gallup. O resultado foi que apenas 43% dos latino-americanos apóiam completamente a democracia. Na América do Norte e na Europa, os índices de descrença na democracia ficaram em 52% e 61%, respectivamente. E, num plano geral, de 57 mil entrevistados em 60 países, 62,1% não acreditam que seus países são governados conforme a ‘vontade do povo’.

A apatia e a revolta dos que estão restritos ao voto também é retratada em recente matéria de Carta Capital (edição 295). A escolha dos deputados para o Parlamento Europeu não empolga e, desde sua criação, em 1999, já sofreu queda na participação do eleitorado de 63% para 49%. As declarações daqueles que deveriam ir às urnas são de descaso, pois têm a consciência de sua inoperância. Devem ser escolhidos 732 deputados de 25 países da União Européia. Contudo, ao que parece, até mesmo os deuses gregos estavam mais próximos dos anseios e problemas da sociedade que os atuais políticos.

Que Bobbio prevaleça

Voltando ao caso específico do Brasil, há pouco tempo a mídia relembrou o fim da ditadura militar. Porém, a análise que deveria ter sido feita é o que, efetivamente, mudou na vida dos cidadãos, além da obrigatoriedade de se votar e de um imposto horário eleitoral gratuito. Na realidade, o Brasil saiu da ditadura da força para cair na ditadura dos números, o que é bem pior, pois esta última ganha um ar de cientificidade e imutabilidade.

Tomando-se por empréstimo as teorias do pensador francês Jean Baudrillard, pode-se dizer que o país vive sob a transparência do mal. Após a orgia da abertura política, o sistema se configura nem como um bem nem como um mal real, mas numa democracia virtual, em que seu povo permanece sob estado de entorpecimento. Num último lastro de esperança veio a eleição de Lula. E hoje a estrela do PT é como as estrelas mortas do universo, cuja luz ainda resplandece aos olhos de alguns, embora não tenha mais fonte real. A cultura da exploração escravocrata, num deslizamento eufemístico, deu lugar à cultura da exportação. A mídia tupiniquim anuncia sob grande alarde os superávits primários e mede quase que minuto a minuto as cotações do dólar e da bolsa. A liberdade econômica é a única a ser exaltada. Movimentos de contestação são tímidos e isolados. E, quando ocorrem, logo são tachados de vândalos e baderneiros ou simplesmente ignorados. Enquanto isso, a maior parte do país permanece como uma terra em transe, resignada e hipnotizada pelos números que não entendem e por novelas que os contentem.

O que surgirá desse impasse que afeta o Brasil e o ‘mundo democrático’ não me atrevo a vislumbrar. O que se espera é que não haja um retrocesso e que o ponto de vista de Norberto Bobbio prevaleça. O filósofo italiano acreditava que o estado natural da democracia é o dinamismo, e sendo assim, ela sempre caminharia rumo a uma evolução qualitativa.

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Formando de Jornalismo pela Facha, Rio de Janeiro