Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A democracia no palco dos interesses

Assinada pelo jornalista Antonio Luiz M. C. Costa, a reportagem ‘Democracias na balança’, publicada na edição 379 da revista CartaCapital (8/2/2006), além de refletir competência jornalística, assumiu a espinhosa missão de pôr o dedo na ferida: o valor universalista da democracia. Reconhecido o mérito da matéria, talvez caiba aqui abordarem-se atalhos que, na reportagem, ficaram à margem.

De antemão, frise-se a constatação de que a cultura ocidental não poderia ter formulado projeto melhor, ou seja, apostar na democracia como processo de conciliação entre as diferentes expressões que integram o Ocidente. Tal princípio é inegociável, independentemente das observações críticas que aqui se seguirem.

Democracia e desvirtuamento

O primeiro ponto a merecer enfrentamento, a partir mesmo dos esclarecedores dados reunidos pela matéria mencionada, é a embaraçosa questão relacionada ao fato de a democracia se oferecer também como valor supremo para culturas situadas fora do modelo ocidental. É esse o sentido maior do título ‘Democracias na balança’.

Em princípio, não há singularidade alguma em afirmar-se que democracia é uma construção cultural e não auto-expressão natural do ser humano. Assim sendo, democracia deriva de aprendizagem, até tornar-se um ‘estado de consciência’. O que exatamente faz com que, na própria experiência ocidental, a democracia esteja ‘na balança’ se deve a um desvirtuamento progressivo do uso que da democracia se tem feito. Mesmo no Ocidente, os alicerces democráticos se constituem em alvo de abalos.

Um dos fatores a concorrerem para a fragilização da democracia, principalmente em sociedades com maior carência cultural e econômica, é a excessiva politização que dela fazem. A democracia esboçada nas pranchetas do Iluminismo tinha enraizamento nas dimensões educacional e social. Este significado primordial foi aos poucos capturado pela disputa política e, a seguir, pela primazia econômica.

Na situação presente, as esferas educacional e social são reféns da atividade política em parceria com as estratégias econômicas. Como a própria instância política se foi aproximando cada vez mais da economia, a democracia parece, aos olhos do cidadão comum, algo sem a relevância devida. É justo nesse descompasso que o Ocidente tenta, por todos os meios, difundir hegemonicamente democracia em culturas diferenciadas e absolutamente deseducadas para os meios e fins aos quais a democracia deve servir, o que gera as condições propícias para a profusão de conflitos e desentendimentos.

O desastrado episódio das charges de Maomé, em última análise, é, afora a exploração histérica patrocinada por grupos políticos, reflexo de ‘estados de consciência’ incompatíveis. Em suma: o Ocidente tenta exportar (e até impor por meio da força militar) um projeto que, no próprio Ocidente, dá sinais de fraqueza.

Liberdade e crença

O desafio, quase a beirar a aporia, com o qual o Ocidente se defronta, na tentativa de redefinir o imaginário de outros percursos culturais, diz respeito ao difícil equacionamento entre liberdade e crença. Até que ponto, a consciência, forjada na crença religiosa, pode, sem deformações, conviver com o espírito da liberdade, condição essencial para a declaração de voto? Haverá liberdade de consciência e de auto-expressão para aquele que, a priori, parte de uma verdade absoluta?

Se a resposta for afirmativa, eleições recentes, promulgadas em contextos de maioria islâmica, revelam o contrário. Se a resposta, no entanto, for negativa, caberia indagar se o instrumento político da democracia é apropriado em tais cenários.

É sabido que, numa cultura enraizada na crença religiosa de perfil fundamentalista, o expediente do voto serve apenas para ratificar o que dita a crença. Sob esse aspecto, a democracia representativa, de inspiração ocidental, é transformada em ferramenta intensificadora do fundamentalismo. O eleitor vota em missionários da divinização. Atestar, pois, a veracidade da segunda opção, ou seja, o reconhecimento de que não há liberdade com devoção religiosa, implica renunciar ao caráter universalizante da democracia.

Para interesse maior de leitores nessas questões, algumas obras prestariam rentável compreensão, a exemplo de Contendo a democracia, de Noam Chomsky (Record, 2003), Cinco lições sobre império (principalmente a lição 2: ‘Globalização e democracia’), de Antonio Negri (DP&A, 2003), A cultura na era dos três mundos, de Michael Denning (Francis, 2005) e O fim de uma era, de John Lukacs (Jorge Zahar, 2005).

A democracia como biombo para negócios

Outro ponto que a eficiente reportagem da CartaCapital deixa suspenso, embora acene indícios, se refere à natureza um tanto obscura da obstinada política do governo Bush, no tocante à implementação, em culturas não-ocidentais, da hegemonia de um modelo político. Curiosamente (ou não), as áreas escolhidas para a ‘democratização’ a qualquer preço coincidem com altos interesses econômicos e estratégicos, notadamente petróleo, gás e ópio. Para o primeiro, Iraque e Irã, por enquanto. Para os segundo e terceiro, Afeganistão.

Contaminando-se à cruzada pela liberdade de interesses econômicos, não se torna difícil deduzir que o projeto do governo Bush tem, na alça de mira, o domínio sobre o controle de reservas. Por outro lado, como o processo de democratização calçado no paradigma ocidental se funda numa prática estranha aos hábitos e valores culturais de sociedades não-ocidentais, o resultado é o conflito – o que propicia espaço de manobra para a expansão de lucros na esfera da indústria bélica.

Fecha-se, assim, o arco de alianças com o qual se sustenta a política do presidente George W. Bush. Sua origem tem um pé na indústria extrativista e comercial de corporações do petróleo e outro está fincado em fabricantes de armamento.

Dupla perda

O governo Bush não esquadrinha nada que se distancie dos seus efetivos patronos. Sob esse prisma, as conseqüências advindas de eleições em zonas de conflito, retirada a retórica política das aparências, se situam no horizonte do previsível. Um destaque na edição da reportagem informa: ‘Ante as eleições no Iraque e na Palestina, os Estados Unidos espantam-se com os resultados inesperados de sua política de ‘democratização do Oriente Médio’’.

A única possibilidade de a afirmação da revista estar correta é compreender que o espanto seja do cidadão estadunidense. Da parte do governo, é difícil acreditar. Quanto mais conflitos houver, mais lucram os ramos do petróleo e do armamento. Que outros setores percam é fato. Todavia, não perdem os que dão sustentação política ao governo dos EUA.

Igualmente não nos iludamos quanto ao modo beligerante com que se conduzem governos de base islâmica. Também para eles, conflitos são rentáveis, quanto mais não seja por auxiliarem na fermentação da ira popular plenamente sintonizável com o fervor religioso.

No embate de interesses, os principais atores fazem a fatura. A única que perde num lado e noutro é a democracia.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)