Uma vez mais, o New York Times torna-se palco de um episódio de fraude ou daquilo que outros chamam de ‘lesa-integridade-jornalística’. Com ou sem eufemismo, o fato envolve o repórter de economia Zachery Kouwe, acusado de ter copiado passagens de artigos do Wall Street Journal, da agência Reuters e de outros, usando-as em reportagens e em posts no blog Dealbook, sem citar a fonte. Kouwe se demitiu antes de qualquer discussão disciplinar interna, provavelmente tentando tornar menos visível o retorno do fantasma de Jason Blair, o mesmo que ‘assombrou’ aquele jornal em 2003 com fraudes e informações inventadas em centenas de reportagens.
Faz parte da tradição negativa do jornalismo o casus ficti ou inventado, do qual resulta na maioria das vezes o banimento moral ou contratual do autor (Jason Blair é hoje uma espécie de conselheiro espiritual). O neologismo norte-americano factoid (factóide, algo que parece, mas não constitui um fato) é uma designação bem popular para este fenômeno, recorrente na imprensa anglo-saxônica desde o século 19.
É famosa a notícia do The New York Sun sobre supostas ‘descobertas científicas’ que provariam a existência de vida na Lua. Denunciada a fraude por outros jornais, os leitores reagiram favoravelmente ao Sun, achando divertido o factóide. Mas esse bom-humor é raro, como se demonstra com exemplos de grandes jornais e agências noticiosas norte-americanas. A sisuda Associated Press foi responsável pela informação mundial de que o Vaticano teria sido vendido ao bilionário norte-americano Bill Gates.
Páginas a rodo
The New York Times é vezeiro no assunto, e não apenas por culpa de uma individualidade problemática. Basta citar o evento da publicação pelo jornal (16/5/2004) de uma longa autocrítica à cobertura da guerra no Iraque, em que os editores reconheciam ter encontrado, na reavaliação da cobertura, vários casos em que ‘não fomos tão rigorosos como deveríamos’. Tratava-se de reportagens com denúncias de que o regime de Saddam Hussein disporia de armas de destruição em massa, algo jamais comprovado, mas que acabou servindo de justificativa ao presidente George Bush para invadir o Iraque. Admitiu o jornal que ‘as histórias contadas por dissidentes iraquianos nem sempre eram bem pesadas, devido ao forte desejo deles de ver a queda de Saddam Hussein’.
A instituição jornalística zela, assim, pela pedra de toque das relações de confiança entre o público e o jornal e, portanto, o principal capital simbólico do jornalista – a credibilidade. Esta decorre de um pacto implícito entre o profissional da informação e o leitor. É um pacto induzido pela bandeira da objetividade, fincada no solo da cultura jornalística desde meados do século 19, quando se começa a fazer uma distinção entre texto opinativo e notícia, certamente como um rescaldo da fé iluminista no conhecimento objetivo.
Para quem pensa, entretanto, que o fenômeno se restringe ao jornalismo, vale consultar a recente edição do Le Monde (16/2/2010) em que o misto de jornalista e filósofo francês Bernard-Henri Lévy admite ter ‘chutado’ a propósito da citação de um autor que simplesmente não existe. Lévy – para quem não conhece a figura – é autor de 36 livros, dois dos quais acabam de ser lançados: De la guerre en philosophie (Grasset, 130p.) e Pièces d´identité (Grasset, 1340p.).
Como se vê, é prolífico. Mas é também um homem rico (de herança) e estrela de mídia. Basta dizer que, a propósito de seus novos livros, ele fez jus a uma entrevista de quatro páginas no L´Express, duas páginas em Paris Match, quatro páginas em Le Point, três páginas em Le Journal du Dimanche, oito páginas em Transfuge (em que foi capa), quatro páginas em Le Figaro Magazine e duas páginas em Libération.
Vaidade intelectual
Com todo esse cabedal, Lévy não conseguiu evitar o factóide, ou melhor, aquilo que em francês se chama canular. É que, na página 122 do seu recém-lançado De la guerre en philosophie, ele ataca ninguém menos do que o grande filosófo alemão Immanuel Kant, apoiando-se em Jean-Baptiste Botul, que teria mostrado ‘logo depois da Segunda Guerra Mundial, em sua série de conferências para os neo-kantianos do Paraguai, que o herói deles era um falso abstrato, um puro espírito de pura aparência’.
Pouco menos de um ano atrás, numa conferência em plena Escola Normal Superior (um dos templos da inteligência filosófica francesa), Lévy tinha dito a mesma coisa e, como agora assinala o Le Monde, ‘na assistência, ninguém se levantou para rir e lhe dizer que Botul não existia’.
Pois bem, Jean-Baptiste Botul é um escritor fictício, criado em 1995 por Fredéric Pagès, jornalista do Canard Enchaîné, o famoso jornal satírico, uma espécie de Pasquim parisiense.
Em outras palavras, Lévy, a estrela da direita filosófica – notório inventor de conceitos reacionários e fóbicos como ‘vontade de pureza’, ‘ideologia francesa’ etc. – ‘chutou’, na mesma linha de Blair e Kouwe.
O jornalismo ainda experimenta a autocrítica junto a seu público, com vista a garantir a credibilidade. Mas no universo da vaidade intelectual, quem protegerá os leitores de Henri-Bernard Lévy?
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro