A política é capaz de definir o futuro dos seres humanos. Da República de Platão, passando por Rousseau e a vontade geral, até chegar ao período em que o ex-metalúrgico Lula da Silva ocupou o cargo de direção deste país, uma considerável variabilidade de conflitos se delineou na figura de disputas entre grupos sociais de interesses distintos travadas nas instituições políticas da modernidade. O poder esteve nas mãos destes ou daqueles, orientados por este ou aquele conjunto programático e filosófico de concepções teóricas e práticas acerca do Estado e da sociedade.
Não obstante, a partir da situação em que os defensores do Antigo Regime se colocaram à direita do rei na França, ao passo que seus potenciais algozes à esquerda, um sentido específico a ser atribuído numa situação em que uma dicotomia estivesse presente, configurada no antagonismo entre posturas políticas, passou a operar como expressão dos sentimentos políticos das nações colonizadas pela Europa, pelo menos nos últimos dois séculos em boa parte da América. Tornou-se relevante mundo afora a distinção entre direita e esquerda no cotidiano das instituições políticas.
O novo milênio chegou e muitos ‘pensadores’ trataram de buscar as fatias moribundas, porém lucrativas, dos mercados intelectuais daquilo que chamam de pós-modernidade, ou modernidade tardia. Dos mais longínquos territórios saltaram e saltam argumentos bradando o fim do trabalho e dos trabalhadores, desgarrando parágrafos denunciadores da falsidade do debate embebido por ideologias que não mais simbolizam nada. Seria o fim das divergências ideológicas, a exclusão dos seus conteúdos? Direita e esquerda não possuem significância na atualidade?
Desigualdade e igualdade
Às vésperas de concorrido pleito na Itália da década de 1990, Norberto Bobbio se propôs a pensar a questão da díade política já clássica, sob o prisma da contemporaneidade. Elaborou um material conciso e denso discorrendo sobre a validade ou não dos polos direita e esquerda, cujo subtítulo, ‘razões e significados de uma distinção política’, congrega bem a mensagem da obra. Proeminente é resgatar o que Bobbio percebe como algumas das principais tentativas em desqualificar a existência e a validade da díade. ‘Na base e na origem das primeiras dúvidas sobre o desaparecimento da distinção, ou ao menos sobre sua menor força representativa, estaria a chamada crise das ideologias’ (2001: 51). Contra isso o autor sentencia que as ideologias permanecem atuando nas esferas sociais e insistir na sua invalidez transparece em si mesmo uma ideologia de negação das ideologias. ‘E depois, `esquerda´ e `direita´ não indicam apenas ideologias. […] Indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política’ (idem).
A razão central em criticar a dicotomia está em desautorizar um dos lados, pois se não existe direita, não existe esquerda, e vice-versa. Se tudo é direita, não há esquerda, como seus contrários. Com efeito, Bobbio estipula que pela sua definição o elemento distintivo entre direita e esquerda está no fato dos vocábulos contrastarem opiniões últimas concernentes às temáticas da igualdade e da desigualdade. ‘Entre os homens, tanto a igualdade quanto a desigualdade são factualmente verdadeiras, pois são confirmadas por provas empíricas irrefutáveis’ (2001: 120). Ocorre que nos indivíduos motivados pela defesa da igualdade social, em detrimento das desigualdades naturais, naqueles que abrem mão das diferenças, em última instância, em prol da igualdade social, situa-se a esquerda; noutra face, naqueles motivados pela defesa das desigualdades naturais perante a igualdade social, naqueles que preferem sublinhar e apostar no caráter intrínseco das desigualdades naturais como fatores essenciais, eis o lugar da direita. A filosofia se insere profundamente quando Bobbio traça uma imagem com Rousseau e Nietzsche:
‘No Discurso sobre a origem da desigualdade, Rousseau parte da consideração de que os homens são iguais, mas são tornados desiguais pela sociedade civil, isto é, pela sociedade que se superpõe lentamente ao estado de natureza pelo desenvolvimento das artes. Nietzsche, ao contrário, parte do pressuposto de que os homens são por natureza desiguais (e para ele é um bem que o sejam, já que uma sociedade fundada na escravidão, como a grega, era, precisamente em razão da existência dos escravos, uma sociedade evoluída) e apenas a sociedade, com sua moral gregária, com sua religião da compaixão e da resignação, pode fazer que se tornem iguais A mesma corrupção que, para Rousseau, gerou a desigualdade, gerou para Nietzsche a igualdade’ (2001: 122).
Uma economia de centro-direita
As análises acima direcionam um sentido relevante para a discussão proposta. No entanto, impera a tarefa de pensar a última década da política brasileira à luz da distinção entre direita e esquerda. Para isso, um antecedente ainda merece atenção. Apreendemos que o critério estabelecido por Bobbio, que leva em conta a relação com a igualdade e a desigualdade, tanto natural como social, nas suas cruzadas combinações, sustenta a existência e delega um sentido contundente à díade e aos debates sobre ela. Por outro lado, também consideramos tal distinção nos parâmetros de determinadas situações, ou seja, não se é de esquerda ou de direita, mas se está de direita ou de esquerda. Convém ressaltar, ainda, que isso não é igual a dizer que as estruturas históricas não influenciam na discussão; constituem, sobretudo, o estar e não o ser.
Na procura por refletir sobre o governo de Lula da Silva, nos parece fundamental pensar três pontos singulares, sob a égide da dicotomia, quais sejam: 1) a política econômica; 2) as políticas sociais; 3) o funcionamento das instituições políticas. Por intermédio desse eixo composto pelos tópicos expostos pretendemos averiguar como se pode falar em direita e esquerda no Brasil deste início de século.
Um olhar austero para as políticas econômicas nos oito anos de mandato do Partido dos Trabalhadores deverá, a despeito do ‘sucesso’ em controlar a inflação – manifestação dos conflitos distributivos –, classificá-las no rol das cartilhas conservadoras, nas quais o superávit primário, as metas inflacionárias e o câmbio flutuante consistem no tripé que embasa a economia nacional desde 1999. Os juros continuam altíssimos, as grandes empresas seguem pautando as campanhas eleitorais, as centrais sindicais abraçadas ao governo e o grande capital com motivos de sobra para sorrir sem receios. O Banco Central, autônomo, pilotado por um homem do setor financeiro. Como designar a economia no Brasil de Lula da Silva, senão ao menos no espectro da centro-direita? Se na ‘era FHC’ medidas similares eram assim designadas, por que com Lula da Silva seriam fantasiadas?
Na prateleira da centro-esquerda
Poder-se-ia objetar que o controle das pressões inflacionárias favoreceu os mais pobres, o que de fato faz algum sentido. Entretanto, através do critério de maior afeição pela igualdade, as receitas econômicas do governo não angariam a virtude de tentar equilibrar o embate entre capital e trabalho, isto é, fazem pouco por um Estado forte dotado das rédeas entre ambos agentes produtivos.
No que tange às políticas sociais, é possível perceber um posicionamento que reclama a igualdade em vários quesitos. As políticas de cotas em universidades, os programas de auxílio/assistência às camadas mais desfavorecidas, enfim, por aí é plausível alcunhar os derradeiros oito anos com características de esquerda, embora mais próximas do centro do que da sua extremidade. Sem mexer nas estruturas, o PT conseguiu por uma via tangencial praticar algumas das suas históricas reivindicações, malgrado os limites de um Estado que se retirou de vez da briga contra o grande capital.
As instituições políticas, por seu turno, não ganharam novas feições com a chegada da turma dos trabalhadores ao executivo maior. Como um tiro no pé, os primeiros anos do governo de Lula da Silva forma marcados por associações em nome da famigerada governabilidade com partidos da direita tradicional (PP, PL etc.), além dos episódios nefastos do mensalão jogados ao vento por Roberto Jefferson. Ainda que o sistema eleitoral brasileiro demonstre certa coerência na relação das composições partidárias e os seus relicários ideológicos, assertiva retirada das pesquisas em que trabalhamos durante três anos no departamento de Ciência Política da UFRGS, fica difícil bater o martelo para uma ideia de mudança do quadro institucional da política brasileira no pós-Lula. Leôncio Rodrigues (2002) demonstrou que a 51ª legislatura da Câmara dos Deputados já possuía uma lógica de composição social dos partidos situados em determinados substratos ideológicos, portanto isso não adviria da entrada do PT na gestão do Estado.
De modo geral, o governo de Lula da Silva deve ser qualificado na prateleira da centro-esquerda, se forem adotados os critérios de Bobbio, sem qualquer referência a juízos de valor. Numa interpretação sucinta, porém razoável, torna-se inteligível concluir a validade da díade, mesmo que na vida real ela seja bastante combatida e achincalhada pelos ideólogos de um mundo que só existe nas suas próprias mentes ansiosas pelo reino do mercado absoluto.
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Professor, sociólogo e jornalista