Apesar da retratação publicada no domingo (8/3), o infeliz trocadilho publicado em editorial da Folha de S.Paulo no dia 17 de fevereiro, que achou acertado qualificar como ‘ditabranda’ o regime militar imposto ao Brasil a partir de 1º de abril de 1964, ainda produz artigos e debates. Não tão intensamente quanto deveria ou quanto merece a revisão daquele período, nem tão profundamente quanto o que nos recomendaria a necessidade de entender como vimos construindo penosamente a nossa democracia desde então.
Para não ter que discorrer monotonamente sobre o que tem sido abrigado pela imprensa, e em especial pela própria Folha, pode-se partir da observação de que a maioria das opiniões sobre a questão se concentra, de um lado, no grupo daqueles que foram atingidos pessoalmente pelos atos de violência dos agentes do regime ou estiveram próximos de outras vítimas, e, do outro lado, por aqueles que procuram justificar a ditadura, afirmando que, afinal, ela não foi tão dura quanto suas congêneres da Argentina ou do Chile.
Entre estes há os que brandem os números do desempenho econômico do Brasil no período, como se indicadores esparsos pudessem justificar o rompimento da normalidade institucional e a fratura na História. Ainda assim, esses indicadores são pura ficção, se confrontados com o conceito contemporâneo de desenvolvimento sustentável.
Modernização atrasada
Também há os desorbitados que ainda sacam o ramerrão segundo o qual o Brasil, em 1964, foi salvo de uma ditadura comunista, a despeito de todas as evidências históricas em contrário. Estes costumam alegar que não se faz com igual severidade o julgamento de ditaduras ‘de esquerda’, como a cubana. Ora, ditaduras são ditaduras, seja em nome de quem tenham se estabelecido, se em nome do povo ou dos banqueiros.
Assim como a estabilidade econômica alcançada temporariamente por Pinochet no Chile, com amplo suporte dos Estados Unidos, não justifica a ditadura chilena, também os avanços cubanos em educação e saúde não devem justificar a supressão da liberdade. A questão central é a quebra da ordem democrática pela imposição autocrática de um grupo de poder, e que sempre resulta em atos de violência, com ou sem derramamento de sangue. A violência mais grave é a institucional, uma vez que o Estado também pratica violência física arbitrária sob o regime democrático.
A maioria dos que rejeitam a tese da ‘ditabranda’ repete que o grau de violência não pode ser qualificado da forma como propôs o editorial, como um ranking macabro de pontuações pelo número de mortos e desaparecidos ou pelo padrão das torturas impostas pelo regime militar aos seus opositores. Violência é sempre condenável, e o rompimento da legalidade pelos militares e seus apoiadores – entre os quais se alinharam, sim, quase todos os grandes jornais do país – é o ponto central, argumentam os indignados.
No entanto, têm escapado ao debate algumas sutilezas que, na verdade, nunca foram verdadeiramente apropriadas pela imprensa, e que têm profundas consequências em algumas das mazelas que ainda corroem este país. Uma delas é a corrupção, enraizada na política e nos negócios públicos desde antes da proclamação da República, mas que se consolidou durante os vinte e poucos anos da ditadura militar. A imprensa conhece os empresários, ministros e outros agentes públicos cujos negócios floresceram graças a relações perversas com os chefes militares. O fato de não ter sido possível publicar tais escândalos na ocasião, por impedimento da censura, não a exime de registrar o que lhe chegou ao conhecimento.
Da mesma forma, a imprensa nunca abordou o tema das negociações da dívida externa brasileira durante o regime militar, que envolveram o desvio de propinas incalculáveis, favorecimento a empresas estrangeiras, transferência de patrimônio nacional para investidores externos e a criação de reluzentes fortunas que, passadas quase três décadas, se exibem hoje cobertas de boa reputação. Isso sem levar em conta os monopólios e oligopólios que atrasaram a modernização da indústria brasileira, do setor financeiro e do mercado de capitais, por conta de favorecimentos a ‘empreendedores’ cujo principal capital era o estômago tolerante o suficiente para negociar com os milicos de plantão.
Lata de lixo
Finalmente, mas ainda longe de esgotar as possibilidades do debate, a tal ‘ditabranda’ brasileira produziu, sim, mortos, desaparecidos e torturados em número comparável aos das ditaduras argentina e chilena. Esses números estão maquiados sob a insensibilidade da imprensa e das instituições públicas para os problemas sociais do país. Eles estão equivocadamente encaixotados nas estatísticas da violência policial.
Sim, porque a polícia brasileira, em todos os estados, foi transformada durante a ditadura militar num perverso e incontrolável instrumento de controle social, que foi treinado para ‘identificar’ e punir preventivamente os supostos objetores do regime e acabou produzindo uma lógica toda especial segundo a qual todo jovem de pele relativamente escura é um inimigo potencial da ordem pública. No tempo da ditadura, esse estereótipo incluía os jovens que se descolavam do modelo caserna com que eram identificados os ‘moços bons’.
Treinada para a repressão preventiva nos termos vagos de um ‘inimigo do regime’, a Polícia Militar mantém até hoje o padrão de identificação e neutralização do ‘inimigo da ordem social’. Basta observar como agem seus homens nos estádios de futebol. Os inocentes torturados, desaparecidos ou mortos nesse processo contam-se aos milhares. Isso sem contar os mortos nos conflitos rurais, quase sempre vitimados sob acobertamento dos agentes da segurança pública.
Somente na região de Xapuri, no Acre, são duas dezenas, entre eles o líder dos seringueiros, Chico Mendes. Na região do Bico do Papagaio, que cobre 66 municípios entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins, perde-se a contabilidade dos assassinatos ocorridos nos últimos trinta anos. Por conta da ‘estratégia’ militar segundo a qual era preciso ‘integrar para não entregar’, hoje temos 70 milhões de cabeças de gado na Amazônia, uma verdadeira bomba ambiental.
Isso é parte da conta da tal ‘ditabranda’. A diferença fundamental entre os nossos gorilas e os da Argentina e Chile é que, lá, eles saíram do poder diretamente para a lata de lixo da História. Aqui, eles continuam rosnando porque sabem que deixaram aliados bem acomodados no poder do regime que chamamos democracia. E na imprensa, claro.
Masmorras oficiais
Poderíamos colocar na contabilidade a destruição da infraestutura do Estado, desde a educação e a saúde ao abandono das cidades. Os prefeitos indicados pelos governos militares nunca se preocuparam com outra coisa do que em construir vias de tráfego. Paulo Maluf é seu ícone, mas todos eles se caracterizaram por se omitir do planejamento urbano e o resultado é o que vemos: favelas, rios transformados em esgotos, ruas desordenadas, com uma ou outra exceção cujo ícone é Curitiba.
Na educação, muitos equivocadamente se referem à escola pública dos tempos da ditadura como exemplo de qualidade. Os indicadores mostram que eram escolas excludentes, para minorias, e o esforço que se tem de fazer hoje para recuperar a estrutura de ensino é parte do preço que pagamos pela ‘ditabranda’. A obsessão pela centralização e controle gerou os monstros da burocracia que levamos duas décadas para domesticar.
E por aí vai. Praticamente todas as mazelas que infestam o Brasil contemporâneo têm raízes naqueles anos de insanidade. A Folha de S.Paulo se retratou na edição do domingo (8/3), depois que cerca de 300 manifestantes protestaram na frente da sede do jornal, reconhecendo que o uso da expressão ‘ditabranda’ foi um erro, pois o termo tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Mas reafirmou que ‘do ponto de vista histórico, é um fato que a ditadura militar brasileira, com toda sua truculência, foi menos repressiva que as congêneres argentina, uruguaia e chilena – ou que a ditadura cubana, de esquerda’.
Menos mal que o jornal venha a público se explicar, mas ainda assim persiste no equívoco, e sua retratação não apaga as manifestações de apoio que recebeu de apressados e sempre solícitos articulistas. Como assim, ‘do ponto de vista histórico?’ Do ponto de vista de qual historiador? Daquele que permaneceu na universidade, escondido na biblioteca, ou do que foi perseguido, exilado, torturado? Por outro lado, a truculência das ditaduras só se calcula pela violência física? Quem estabeleceu os critérios desse ranking? O departamento de infográficos da Folha?
Fazer a conta da ditadura pelo número de mortos nas masmorras oficiais é vilipendiar a História. É coisa de alienados.
******
Jornalista