Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A ditadura do ombudsman

Qualquer pesquisa na internet informará que ombudsman é uma palavra sueca que significa representante do cidadão. E que a Folha de S.Paulo foi o primeiro jornal brasileiro a ter algo semelhante, o seu próprio ombudsman, que deveria ser um profissional dedicado a receber, investigar e encaminhar as queixas dos leitores; realizar a crítica interna do jornal e, uma vez por semana, aos domingos, etc. etc. Vamos ao ponto e ao fato, agora.

Em 29 de julho de 2009, lancei o livro Soledad no Recife em São Paulo. O livro narra os últimos dias de Soledad Barrett, a militante socialista que teve a infinita infelicidade de ser mulher do Cabo Anselmo, pois grávida foi entregue por ele ao assassino Fleury. Que a executou sob torturas, a ela e a mais cinco militantes, em 1973. Isso é histórico. O livro, uma recriação literária em cima de pessoas, depoimentos e papéis, expõe o caráter da traição de Anselmo, em um momento que não poderia ser mais inconveniente para ele.

De fato, na manhã seguinte ao lançamento, em 30 de julho, o Cabo Anselmo foi à Justiça Federal de São Paulo tirar impressões digitais para comparar com as registradas em seus documentos na Marinha. No outro dia, a Folha de S.Paulo noticiou em caráter de exclusividade:

‘Cabo Anselmo reaparece em São Paulo e quer anistia’

A resposta

Em pouco mais de 40 minutos, Anselmo tirou suas impressões digitais. A conclusão – que vai dizer se a pessoa que fez a perícia é o cabo Anselmo – será apresentada em 30 dias. Só depois ele poderá retirar novamente carteira de identidade, CPF e título de eleitor, e passará a ser o último dos beneficiados pela Lei de Anistia…

‘`Estou tomando porrada há muito tempo´, (Anselmo) reclamou à Folha. `Esse pessoal da esquerda ainda inventa muita mentira´, diz. `Há muita resistência no governo. Estão me enrolando já faz um bom tempo.´’

Então enviei esta mensagem ao ombudsman do jornal:

‘Sou Urariano Mota, escritor e jornalista, autor do livro Soledad no Recife, lançado há menos de uma semana. Nesse livro há uma recriação dos crimes conhecidos como a `Chacina de São Bento´, e. mais particularmente, da traição de que foi vítima Soledad Barrett Viedma, mulher do Cabo Anselmo, entregue por ele a Fleury. 

Gostaria de chamar sua atenção para: 

a) dois dias depois do lançamento do livro, o Cabo Anselmo reapareceu como notícia na Folha – a denúncia que faço do seu trabalho em janeiro de 1973 vai contra as suas pretensões de anistia;

b) não tive acesso à Folha de S.Paulo, apesar do contato da editora com o repórter Lucas Ferraz.

Em nome da imparcialidade, ou pelo menos em nome do tradicional `ouvir o outro lado´, gostaria de ser ouvido, pois escrevi a outra versão, expressa em Soledad no Recife.’

A isso respondeu o ombudsman:

‘Caro Senhor,

a resposta da Redação está abaixo.

`A reportagem a que o leitor se refere era sobre o tutor do Cabo Anselmo, acusado de tortura.

No texto é citado o episódio conhecido como massacre de São Bento, quando foram assassinados seis militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). O episódio consta em várias obras que retrataram o período. A Folha citou na reportagem o livro A Ditadura Escancarada, do jornalista Elio Gaspari, que descreveu a ação como uma `das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura´.’

Caixa online

O que me fez retornar:

‘A resposta não satisfaz, porque:

1. Aqui, mais uma vez, repete-se o erro comum na imprensa – bem sei, sou também jornalista: em lugar de analisar e aprender, justifica-se.

2. O meu livro era o fato mais imediato e relevante às ações do Cabo Anselmo: lançado em 29/07, véspera de sua ida à Justiça em São Paulo, e todo narrado e construído em cima da ex-mulher do `cabo´, a brava Soledad Barrett Viedma.

3. Se o ilustre repórter houvesse parado para ler ou me ouvir antes de se justificar, aprenderia que jamais houve qualquer massacre na chácara. Então veria que o meu livro desmonta, peça por peça, o massacre da chácara. Jamais houve qualquer ou quaisquer assassinatos na chácara São Bento.’

E assim ficamos, até hoje. Nem a Folha me ouviu nem resenhou o livro (que merece alguma crítica, acreditem, pois sobre ele já falaram O Estado de S.Paulo e O Globo).

Somente agora, três meses depois, revelo este caso da democracia na Folha de S.Paulo. O seu ombudsman pode até receber e encaminhar as queixas dos leitores. Mas poderia ser substituído por uma caixa online, que a cada reclamação respondesse automático: ‘caro senhor, muito obrigado, senhor, atenciosamente’.

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Jornalista e escritor, Recife, PE