“Você sabe que praticamos torturas. Mas para você não é difícil de suportar porque a vida de freira já é uma tortura.” (Frase ouvida por Madre Maurina durante um dos “interrogatórios”)
Os veículos de comunicação e os órgãos de defesa dos direitos humanos mantiveram-se inexplicavelmente emudecidos com relação ao falecimento, ocorrido no último dia 5 de março, em Araraquara, estado de São Paulo, de Madre Maurina Borges da Silveira, vítima inocente de uma tragédia espantosa ocorrida nos chamados “anos de chumbo”. Todos parecem haver se esquecido de que o martirológio dessa mulher valorosa, absorvida por inteiro na missão apostólica que a atraiu, bem mocinha ainda, à vida religiosa, que foi fato fundamental no desencadeamento da reação desassombrada do cardeal arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, à testa de um grupo que congregou outras influentes lideranças espirituais, na denúncia e no bom combate às ignomínias praticadas por “agentes da lei” nos porões da ditadura militar. Foi assim que começou o movimento que, mais tarde, receberia a denominação de “Tortura, nunca mais”.
Fiquei conhecendo Madre Maurina nos idos de 1956. O Correio Católico, diário vinculado à Arquidiocese de Uberaba do qual era editor-chefe, publicou reportagem a respeito de uma família de Perdizes, Triângulo Mineiro, que se notabilizava pela especial circunstância de abrigar em seu seio quatro irmãos (dois homens e duas mulheres) que haviam optado pela vida religiosa. Um deles, Manoel, frade dominicano, veio a assumir o cargo de superior na congregação. Outro, Vicente, integrante do clero regular, exerceu funções paroquiais na Província Eclesiástica de Uberaba. As duas mulheres ingressaram na ordem franciscana, consagrando-se a meritórios trabalhos com menores desamparados. Os pais, Antônio Borges da Silveira e Francelina Teodoro Borges, pequenos sitiantes, pessoas simples, rodeadas de estima e apreço no lugarejo em que viviam, criaram condições perfeitas para que a vocação religiosa dos filhos pudesse florescer. Nutriam com relação ao fato justificável sentimento de orgulho.
Testemunho da missão assistencial
Em 1970, 14 anos passados, de forma inesperada e num relato extremamente chocante, tive notícia novamente de Maurina Borges da Silveira. Visitava, naquela manhã de sábado, como fazia todas as vezes em que ia a Uberaba, o arcebispo Dom Alexandre Gonçalves Amaral. Apoderado de santa indignação, o ilustre e saudoso prelado, uma das inteligências mais fulgurantes do episcopado, articulando-se com outros membros da Igreja na busca de uma solução para o caso, colocou-me a par dos hediondos pormenores de uma violência inimaginável cometida por agentes do governo contra a referida religiosa, à época diretora de uma instituição assistencial em Ribeirão Preto, o “Lar Santana”. Contando então com 43 anos, a freira franciscana foi arbitrariamente detida por truculentos membros da tristemente célebre Operação Bandeirantes (Oban), sob a falsa acusação de participar de um grupo armado hostil à ditadura militar. O orfanato de Madre Maurina cedia na ocasião, uma sala, para reuniões periódicas, a estudantes ligados à Ação Católica. Alguns ou todos eles, não se sabe bem, opunham-se ao regime vigente, mantendo segundo a polícia, ligações com movimentos da chamada guerrilha urbana.
Madre Maurina, pessoa inteiramente consagrada ao mister religioso, nada sabia a respeito das ações políticas desenvolvidas pelos rapazes. Mas por conta da cessão da sala, por sinal cedida aos jovens antes mesmo de sua chegada à direção do orfanato, acabou sendo lançada, de hora para outra, no torvelinho avassalador de uma tragédia com características, pode-se dizer, kafkianas. Foi detida, barbaramente espancada, torturada, seviciada, alvo de toda sorte de humilhações. Seus algozes forçaram-na, na base da pancada e do choque elétrico, a assinar declarações em que se confessava amante de militantes políticos apontados, como era de hábito na época, como subversivos. De nada valeram as ponderações feitas em seu favor por religiosos e superiores eclesiásticos, as manifestações solidárias das pessoas que acompanhavam de perto, com admiração, a rotina de seu extraordinário trabalho apostólico, dando testemunho fidedigno de sua absorção por inteiro à bela missão assistencial a que se dedicava.
Arcebispo confirma as sevícias
As atrocidades tomaram tal proporção que o então arcebispo de Ribeirão Preto, Dom Felício Vasconcelos, atordoado face ao desinteresse das autoridades em investigarem as denúncias acerca das ignomínias cometidas contra a freira, diante do silêncio cúmplice e acovardado da grande mídia e do amordaçamento imposto aos demais veículos de comunicação, tomou a arriscada decisão de ocupar os púlpitos de Ribeirão Preto para condenar as felonias dos agentes policiais e militares e decretar oficialmente a excomunhão dos agentes envolvidos na estarrecedora ação criminosa.
O extinto Jornal do Brasil, na edição de 16 de novembro de 2003, publicou o teor de uma carta que Madre Maurina conseguiu fazer chegar às mãos do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, “invocando a Deus como testemunha” e relatando, com pormenores, os suplícios a que foi submetida pelos seus captores. Os pormenores dos “interrogatórios”, das sessões de tortura, das sevícias de natureza sexual são simplesmente apavorantes.
A carta não mereceu qualquer atenção digna de nota da parte do governo. O apelo angustiado da freira esbarrou em glacial e cruel indiferença. Dom Paulo Evaristo Arns, em depoimento ao Jornal do Brasil em 16/11/2003, confirmou as sevícias infligidas à religiosa durante o período em que permaneceu detida. Disse, a propósito: “Não negarei as evidências das sevícias sexuais, pois isso ficou demonstrado no depoimento dela e de outras presas que estavam com ela em Ribeirão Preto e também passaram por esses horrores.”
O exílio forçado
No mesmo depoimento, o cardeal desmentiu enfaticamente um boato maldoso posto a circular, ao que tudo faz crer, pelos próprios agentes policiais e militares que a mantinham encarcerada, a respeito de que a freira estaria grávida em consequência de “relacionamento promíscuo” com “companheiros de militância política”. A sórdida maquinação ia mais longe: por causa de “inconveniente gravidez”, Madre Maurina havia decidido fazer “aborto”. À vista de tudo, a Igreja “teria intercedido” junto ao governo para que a religiosa figurasse numa lista de presos políticos encaminhados ao exílio no México em troca da libertação de um cônsul japonês sequestrado pela guerrilha urbana.
O combativo Dom Evaristo desfez toda a rede de intrigas: “Está na hora de acabar com as mentiras e os boatos que rondam esse episódio. Penso que a inclusão do nome de Madre Maurina na lista de presos trocados pelo cônsul japonês se deve aos próprios militares. Eles queriam, naquele momento, demonstrar para a opinião pública o quanto a Igreja estava comprometida com a causa. Essa foi a forma de desmoralizar os religiosos, exibindo-os como terroristas, numa espécie de vingança. Ela era mulher e freira. Isso chamava a atenção mais que tudo.”
Madre Maurina ficou ainda mais arrasada psicológica e fisicamente – se isso fosse ainda possível de ser concebido face ao martírio que lhe foi imposto – com o exílio forçado. Firmou declaração, reafirmando sua inocência “diante de Deus” com relação às acusações, dizendo não conhecer nenhum dos integrantes da lista dos prisioneiros trocados pelo cônsul geral do Japão, nem tampouco nenhuma das organizações “subversivas ou comunistas, ou o que quer que seja” envolvidas nos acontecimentos daquela hora. Explicitou com clareza sua disposição pessoal em não sair do Brasil para qualquer outro país e, aqui, poder provar, perante a Justiça, a verdade dos fatos.
Já no exílio, no México, dirigiu apelos dramáticos ao governo para que lhe permitisse o retorno, “a fim de ser normalmente processada e julgada (…) e demonstrar a minha inocência”.
Deus estava presente
Do México, recolhida ao Convento das Irmãs de São José de León, onde permaneceu em exílio forçado até a anistia em 1979, Madre Maurina encaminhou inúmeras correspondências às autoridades brasileiras, pedindo permissão para regressar a terra natal. Existem indícios de que, em alguns setores do governo, houve quem se desse conta, em dado instante, da necessidade de se proceder a um reexame do doloroso caso da freira impiedosamente alvejada pela boçalidade e paranoia dos agentes da lei.
Em julho de 1971, a 2ª Auditoria da 2ª Comissão da Justiça Militar aconselhou o retorno da madre. Esse posicionamento, unânime e inédito, foi tomado num período ainda de violenta repressão. De algum modo, o ministro Alfredo Buzaid sensibilizou-se com a decisão. Chegou mesmo a elaborar exposição de motivos ao então presidente Médici com minuta de decreto até assinada revogando o banimento da freira. O expediente ficou paralisado até junho de 76, alcançando, já aí, o governo Geisel. O sucessor de Buzaid na pasta da Justiça, Armando Falcão, deu andamento ao processo retido emitindo parecer conclusivo contrário à concessão da permissão da vinda da interessada, por inoportuna e inconveniente. Geisel acatou o parecer.
Madre Maurina continuou a amargar o indesejado exílio. Nessa tormentosa fase, seu pai, Antônio Borges da Silveira, veio a falecer. Negaram-lhe o direito de comparecer ao sepultamento. Frei Manoel, dominicano, pouco antes da partida de Maurina, não escondendo imensa ternura e orgulho em relação à irmã, comentou o sofrimento inaudito que seu martírio impôs à família. Contou, ainda, que numa das sessões de tortura a que foi a freira submetida, ela clamou por Deus, dizendo aos torturadores que Ele estava ali presente. Deu para perceber que alguns deles sentiram-se, momentaneamente, abalados com aquela invocação, dando sinais de medo. Apesar dos suplícios porque passou, Maurina perdoou-os a todos. “Sua fé foi sempre muito grande”, é o sacerdote ainda que afirma.
História é citada em livros
Reservei para o fecho do relato acerca do martírio imposto a Maurina uma revelação intrigante. Tem-se aí configurado um retrato impecável da hipocrisia e farisaísmo imperantes em certos ambientes mundanos. Ambientes esses sempre propícios, em momentos de terror político, às práticas do dedurismo encapuzado e do denuncismo irresponsável. A própria freira contou a história ao jornalista Luiz Eblak, num papo de várias horas. Tomei conhecimento da entrevista consultando a Wikipedia. O repórter pergunta a Madre Maurina: “De onde acha que vieram tantos boatos sobre a senhora, como os episódios de seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?” A resposta da freira surpreende, deixando subtendidos os malefícios irreparáveis à dignidade humana que, em momentos de desmandos autoritários, a má-fé, a intolerância, a inveja são capazes de engendrar.
“Tem uma coisa – registra a religiosa – que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No Lar Santana, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no orfanato Lar Santana. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu disse para as famílias: `O orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um recanto para viver, que não tem pai nem mãe.´ Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.”
A outra pergunta do repórter sobre se a freira sabia das atividades políticas, consideradas subversivas pelas autoridades, que os integrantes do Movimento Estudantil Jovem desenvolviam na sala em que se reuniam no Orfanato sob sua direção, Maurina responde: “Não sabia. Não sabia de nada. Só sabia do Movimento de Estudantes Jovens, mas nada mais. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palavra sobre o amor. Então, nem dá pra imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interesse por palestra de uma freira sobre amor.”
A Editora Vozes lançou, há alguns anos, um livro, da jornalista Matilde Lemos, intitulado Sombras da Repressão – O Outono de Maurina Borges. A história da madre é focalizada com base em entrevistas feitas pela autora. Um outro autor, Jacob Gorender, também fala do caso Maurina em seu livro Combate nas Trevas.
Quem sabe se, mais adiante, alguém não se animará a produzir documentário para cinema ou televisão a respeito da tragédia de Maurina. Até mesmo como uma forma de expressar a repulsa da esmagadora maioria dos cidadãos que acreditam e confiam nos valores da democracia e no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e que abominam toda forma de totalitarismo e de rejeição, sustentada pelo arbítrio, a esses valores e direitos.
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[Cesar Vanucci é jornalista, Belo Horizonte, MG]