Uma das principais características do sistema capitalista é a capacidade de mercantilizar praticamente todas as esferas da realidade. Sob o prisma da sociedade de consumo, as necessidades humanas, desde as mais básicas às mais complexas, tornam-se passíveis de se transformar em fonte de lucro. No primeiro capítulo de O Capital, Marx caracterizava o capitalismo como uma grande circulação de mercadorias, sendo os seres humanos apenas meios para a reprodução em larga escala de bens materiais que, ao serem fetichizados, passam a assumir qualidades que vão além da simples materialidade. Em outros termos, as coisas passariam a ser personificadas e, por outro lado, as pessoas seriam coisificadas. As mercadorias deixam de ser mensuradas pelo seu valor de uso para serem avaliadas por sua dimensão simbólica. Nesse sentido, os seres humanos, por meio do trabalho alienado e do consumo induzido, são meros instrumentos para a reprodução do capital.
Adaptando as ideias marxianas ao século 20, o filósofo francês Guy Debord aponta que a sociedade contemporânea é uma imensa acumulação de espetáculos. De acordo com Debord, “espetáculo” é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social, quando o tempo livre do trabalhador passa a ser ditado pelo consumo alienado, com o “ócio” transformado em “lazer”. “A atual libertação do trabalho, o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho”, concluiu o filósofo francês. Entre os efeitos sociais do espetáculo, podemos citar a dominação da economia sobre a vida social, a degradação do “ser” pelo “ter” (socialmente um indivíduo é valorizado pelo que possui, e não pelo seu caráter), a submissão da consciência à forma mercadoria, o alijamento da realidade e a sobreposição da imagem sobre o conteúdo.
Todavia, não há como falar em sociedade do espetáculo sem mencionar o seu principal palco de propagação: a mídia. Embora inúmeras pesquisas de audiência indiquem que os grandes veículos de comunicação não são capazes de manipular imediatamente seus receptores, a longo prazo, um determinado indivíduo que é exposto frequentemente aos conteúdos de programas televisivos, tende a absorver inconscientemente os preceitos ditados pela mídia. No ensaio O reino da contemplação passiva, Anselm Jappe assevera que a televisão contribuiu peremptoriamente para criar o homem-mercadoria. Com a televisão, a mercadoria invade definitivamente todas as esferas da vida social. Necessidades básicas do ser humano ganham outras conotações: não tenho apenas sede, desejo beber um refrigerante; não quero apenas um relacionamento afetivo, mas um romance aos moldes do casal da telenovela; crianças já não são mais responsáveis por criar suas próprias brincadeiras, querem o brinquedo visto na propaganda. Através da publicidade, padrões de consumo são ditados e pseudonecessidades são criadas (trocar o celular constantemente, possuir o computador mais moderno, frequentar os lugares da moda, ostentar um automóvel do ano). Não obstante, a mídia também contribui para o espetáculo ao superdimensionar, dramatizar ou distorcer determinados acontecimentos, banalizar o real e transformar fatos triviais do cotidiano em notícias de interesse público.
A banalização do real
Fatos banais na vida de pessoas famosas (o nascimento de um filho, um passeio na praia ou um casamento) ensejam extensas matérias em revistas como Caras, Quem Acontece e Contigo ou são destaques em programas como TV Fama e Vídeo Show e em sites especializados em fofocas. É o espetáculo mostrando as faces mais fúteis do ser humano. Se na Grécia Antiga as pessoas adoravam os deuses do Olimpo e na Idade Média os santos eram venerados, na “sociedade do espetáculo” há o culto às celebridades. Atores de telenovelas, esportistas e astros da música são alçados ao status de semideuses. Ademais, a televisão brasileira conseguiu uma façanha que a nossa historiografia jamais logrou: criou “mitos nacionais”, aos quais os brasileiros passaram a se identificar. Ayrton Senna da Silva é um dos maiores “heróis nacionais” somente pelo fato de dirigir um carro em alta velocidade. Na corte midiática de nosso país, Maria das Graças Xuxa Meneghel, que ajudou a impulsionar o processo de erotização precoce de toda uma geração, ironicamente foi agraciada com a alcunha “Rainha dos Baixinhos” e o cantor Roberto Carlos é simplesmente o “Rei”.
A sociedade do espetáculo (e seu principal instrumento de difusão, a mídia) também invadiu a esfera esportiva. Eventos como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo angariam bilhões de telespectadores e movimentam vultosas quantidades de dólares. No livro O monopólio da fala, Muniz Sodré afirma que o futebol há muito tempo deixou ser apenas um esporte para se transformar em um grande espetáculo de massa. Para um atleta dos dias hodiernos não basta apenas ter boas atuações em campo (talvez isso seja até secundário): é preciso saber se postar diante das câmeras, vender produtos, atualizar diariamente o seu perfil nas redes sociais e usar o corte de cabelo da moda. Por sua vez, o voleibol, um dos esportes mais populares do planeta, teve que mudar suas regras para melhor se adaptar ao formato televisivo. Até o campo científico, considerado “alheio a influências externas”, não está imune ao espetáculo. Atualmente vários estudiosos são reconhecidos e respeitados não pelo conteúdo de suas obras, mas de acordo com as aparições na mídia. Já as redes sociais, sobretudo o Facebook, levaram o espetáculo a patamares nunca imaginados por Guy Debord. Através de seu perfil virtual, uma pessoa pode criar e recriar várias imagens sobre si mesma. A partir do truísmo “partiu”, muitos internautas divulgam todos os passos do cotidiano e, ter a sensação de que está sendo “seguido”, é a melhor forma de se sentir uma celebridade. O futuro imaginado por Andy Warhol enfim chegou: no Facebook todos podem ter seus quinze minutos (virtuais) de fama. Em nossa contemporaneidade qualquer indivíduo com acesso à tecnologia é um criador de espetáculo em potencial. Enfim, nunca foi tão fácil banalizar o real.
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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG