A política é tão agônica quanto a arte. Não por acaso, uma das acepções etimológicas de discurso vem do grego, agon, prefixo genético de agonia. Discursar dramaticamente é ir em busca do sentido e, por isso, do sopro que nos anima, ou seja, que nos mantém vivos, isto é, com alma. Alma e ânimo, nos momentos limítrofes, exasperam-se de forma hiperbólica, ora no entusiasmo, ora nas ribanceiras que dão para o lado dos abismos – literalmente, descida aos infernos.
Em contextos de guerra, conflito, disputa, competição, jogo e eleição – especialmente em segundo turno –, os atores se tornam por demais agônicos, nas locuções, nas encenações, nas ações, enfim, são amantes apaixonados, desesperados e dementes de uma causa e por ela. Aqui, também vale recorrer ao proverbial, à romana e ancestral sentença segundo a qual os amantes são dementes (amantes amentes).
Momentos dramático-discursivos são também momentos de hipertrofia da vigilância e da visibilidade que se quer dar, a si – no eixo da legitimação; e ao outro – o oponente –, no eixo da negação. Ou, como disse certa vez uma ilustre referência da vida republicana brasileira, ‘o que é bom eu mostro; o que é ruim eu escondo; eu não tenho escrúpulos’. E as regras? E as normas? E essa normatividade que depende da integridade de cada locutor/interlocutor, que é o decoro? Também sofre muito à medida que a peleja se encaminha para o fim, o limite dos limites que apontará o vencedor, o vitorioso. Mas também a qualidade moral da vitória.
O maniqueísmo empobrece as questões
Vitória sem legitimidade não é vitória, pois a vitória legítima há de obter do oponente algum reconhecimento. É isso mesmo, parte da qualificação da vitória está no abraço catártico entre vencedor e vencido. Que coisa horrível, quando um presidente da República não passa a faixa para o outro, ou deixa o palácio pelos fundos, muitas vezes, da forma como entrou lá. Na democracia, no entanto, fica sempre um gosto de mal-estar quando a oposição não depôs as armas e a situação tem de estar sempre em alerta.
Em vésperas de eleição, mesmo quem está quieto no seu canto receberá por debaixo da porta ou pelas esguelhas do correio eletrônico uma enxurrada de apelos agônicos, nem sempre orientados pela honestidade – senão dos fatos, pelo menos dos propósitos. Há quem queira a vitória a qualquer custo, a qualquer preço e no sopeso de qualquer minúscula possibilidade. E é nessa extremidade onde reside o perigo da extinção de qualquer vestígio ético.
Em momentos agônicos, especialmente nesse espaço público que é a imprensa – que, por sua vez, hospeda o pulmão da democracia que é a ‘esfera pública política’ –, assistimos a um desfile incessante de performances e imagens que querem porque querem arrastar os nossos corações e mentes como se eles fossem indispensáveis para o engrosso dos torvelinhos que se formam. E como se defender desse arrastão cívico? Certamente, não se escondendo, não se omitindo, não saindo da plateia. Aliás, ser plateia era um dos papéis originários do público: estar acomodado, assistindo aos contendores para saber qual aplaudir. E, às vezes, até baixar o polegar, indicando que os derrotados não merecem continuar vivendo.
Ora, reza um dos mais elevados oráculos da atualidade em matéria de ética discursiva, o filósofo Jürgen Habermas, que num contexto de esfera argumentativa deve vencer o melhor argumento, mas não em detrimento dos demais. Ou seja, num contexto de racionalidade comunicativa – em contraposição à racionalidade estratégica –, os argumentos não são excludentes, por mais que se contraponham pontos aparentemente binários como a favor ou contra. O maniqueísmo empobrece as questões, pois lhes retira o contexto.
Todos trarão um primado milenarista do bem
Questões como ‘contra ou a favor do aborto’ são radicais ao extremo, especialmente quando não há contexto. Exemplo: mesmo quando a gravidez é de infante e decorrente de estupro? Mesmo em se tratando de feto anencefálico? Mesmo quando há indícios de que a preservação da vida do feto comprometerá a vida da mãe? E qual a vida mais importante, do feto ou da mãe?
Nessas horas, até o uso das palavras pode ser estratégico. A semântica também é uma arma. E encurralar o adversário em suas contradições – apresentando ao público o depoimento de uma testemunha ressentida –, é bem comum aos que não têm escrúpulos. Lembro-me de que certa vez, ao ser entrevistado, o ex-presidente americano Jimmy Carter foi perguntado se já havia traído a esposa, ao que respondeu: só em pensamentos. A resposta, num contexto evangélico, significa ‘sim’. Dedução lógica: adúltero, pois – diz o texto sagrado –, aquele que prevarica em pensamentos já o fez.
Eleições não são o fim do mundo. E a terra não estará arrasada se o nosso candidato não sair vitorioso, desde que o contexto seja de fato democrático e leal. Há candidatos que sentenciam: derrotado, no momento seguinte estarei na oposição; leia-se: continuarei dando combate. Olhando, ouvindo e lendo todos os candidatos, todos são muito bons e todos trarão para o Brasil um novo primado milenarista do bem. Melhor que empatem, então, e se isto não acontecer, que um vire vice do outro, pois em termos de promessas, melhor ficamos com os dois corolários. É demais para o eleitor querer que o vencido colabore com o vencedor? Afinal, eles nem são um contra o outro, mas disputam apenas o que é melhor para o país, para o povo, para a nação, para o cidadão. Nada querem para si, a não ser a chance de se entregar por um valor maior que a sua própria vida, a pátria.
A urna é a nossa consciência
Alain Touraine, referência das maiores em matéria de discurso teórico sobre o que é democracia, disse recentemente, num desses programas de entrevistas especiais, que os Estados se acham esgotados em sua capacidade de provedores de bem-estar. E que as alternâncias de partidos nos Estados pouco vão além de escolhas técnicas, entre uma e outra corrente na gestão dos problemas conjunturais. E, depois, o mundo está de tal forma engessado que o abrir e fechar de asas de uma borboleta na tundra siberiana pode afetar a intensidade dos ventos que a partir da Antártida vão influir nas secas do Nordeste. Quanto mais a política cambial que venha a ser posta em prática pela China face ao barateamento da moeda norte-americana.
Poucas personalidades do mundo da política terão a coragem do então primeiro-ministro Winston Churchill, quando da convocação dos ingleses para dar combate ao nazismo: ‘Só lhes tenho a oferecer sangue, suor e lágrimas.’ Tamanha sinceridade se devia ao fato de não ter condições de prometer sequer condições de dignidade em caso da derrota – naquele momento, a probabilidade mais evidente.
Candidatos fortes e prometedores de paraíso são inversamente proporcionais à maturidade democrática de um povo – em outro termos, à capacidade que os Estados e as economias têm hoje de assegurar alguma coisa para o futuro. Há alguma sabedoria já acumulada pela ciência política em compreender que democracias fortes não combinam com políticos-titãs. Quanto mais um país depender de quem está no timão, mais frágil a sua sorte, pois nenhum Titanic estará acima dos fatores acidentais da viagem. O que não significa que qualquer piloto servirá. Mas não basta a um piloto a capacidade técnica. É preciso também que seja humano e, dentro da sua humanidade (para a qual os limites são uma certeza), tenha escrúpulos.
Existe ética na política? Como, se a política é a própria arte da estratégia? E quanto mais limítrofes as situações, menores as chances de decoro entre os antagonistas? De acordo com a jurisprudência firmada no assunto por formuladores do porte de um Jean Piaget – e do seu principal continuador, Lawrence Kohlberg –, a ética se constrói e se prova exatamente nas situações limítrofes e dilemáticas, ou seja, diante dos desafios. A escolha por um ou outro destino não se faz sem perdas. Mas não se trata apenas de se fazer um cálculo matemático capaz de apontar qual o lado que apresentará a mais expressiva margem de lucro.
As decisões embasadas na ética são necessariamente qualificadas pelo agir segundo princípios. Isto implica invalidar a vitória que não seja moral e publicamente reconhecível. Melhor, então, a derrota legítima que a vitória espúria. Derrota de quem? Vitória de quem? Não dos candidatos, é claro, mas da democracia brasileira, que, espera-se, saia mais fortalecida de um processo de crescimento, que são as eleições e, com elas, também novo paradigma de voto: o voto consciente e responsável de quem não se limitou a votar, mas que continuará qualificando o seu voto, por meio da fiscalização do ‘programa’ e da participação na execução do mesmo. É o voto corresponsável, ainda que não saia vitoriosa a nossa escolha. Votar com lealdade para com os princípios. A urna é a nossa consciência pelo lado de fora.
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Jornalista, professor da Universidade de Brasília