Década de 1960. O clima tenso entre as duas grandes potências da Guerra Fria era o pano de fundo para uma corrida tecnológica sem precedentes. Cada nova arma de guerra, cada novo dispositivo de defesa poderia ser o diferencial a determinar a sobrevivência e a morte não apenas da União Soviética ou dos Estados Unidos, mas do capitalismo ou do comunismo. E eis que o lado que terminaria por vencer a batalha cria uma tecnologia que iria mudar para sempre a história das comunicações – a internet.
Os americanos temiam um ataque soviético que pudesse destruir os seus centros de controle, que à época substituíam a passos largos o analógico pelo digital. No bojo dessa evolução, uma equipe de engenheiros do exército idealizou um modelo de compartilhamento de informações que permitisse a replicação de dados armazenados nos computadores das forças armadas. Desse modo, se a central de controle fosse atingida, as informações que lá estavam guardadas não seriam perdidas, pois estariam também armazenadas em diversos hosts espalhados pelo país, administrados por uma autoridade central única. Além disso, as rotas de transmissão de informação eram múltiplas – se uma ou várias delas fossem atingidas, o sistema poderia automaticamente remanejar o fluxo de informações para aquelas que permanecessem íntegras.
Assim surgia a Arpanet, embrião da nossa internet. Uma tecnologia de guerra, controlada pelo Exército, destinada a gerar uma rede de informações robusta e imune a ataques externos. O que se viu de lá para cá, todos nós pudemos acompanhar. Houve um crescimento vertiginoso da rede, gerando uma nova revolução midiática que alguns – os mais exagerados, é verdade – veem como um marco de ruptura na história, comparável até mesmo à invenção da escrita.
Egito faz o que ninguém fez
Década de 2010. A União Soviética já não existe mais. A Guerra Fria acabou. A internet está em quase todo lugar. E a imprensa – sim, aquela brava resistente – ainda vive e está publicando mundo afora, com exageradas tintas, o papel desempenhado pelas mídias sociais nas revoltas civis que se espalham pelo mundo árabe. ‘Ninguém controla a internet’, afirmam alguns. ‘A rede mundial é o supremo ícone da liberdade’, bradam outros. ‘Descentralizada, a internet baseia-se na interatividade e na possibilidade de todos tornarem-se produtores, e não apenas consumidores de informação’, clamam os mais eufóricos.
E eis que o governo do Egito, em poucos minutos, nos traz de volta à realidade. A internet pode até ser um fenômeno cultural sem precedentes – e, sob esse enfoque, de fato parece livre, descentralizada, incontrolável, igualitária. Mas na verdade ela é, do ponto de vista tecnológico, muito similar à velha Arpanet que lhe deu origem – uma arma de guerra, presa, centralizada, controlada, hierarquizada. E como ainda não cometemos a insanidade de criar tecnologias com vida própria, que terminarão por nos escravizar, a internet, como qualquer ferramenta inventada pelo homem, pode ser desligada.
E foi o que o governo egípcio fez: desligou. Em uma ação sem precedentes na história, as autoridades locais cortaram as conexões internacionais de todos os provedores de acesso do país. À 00h34 do dia 28 de janeiro, no horário local, houve uma derrubada simultânea de todas as rotas de rede do Egito, que ligavam os dez grandes provedores locais ao resto do mundo. Acabava, assim, o #foramubarak.
E o Egito fez o que ninguém faz
Mas o que acontece quando alguém desconecta uma nação de 81 milhões de habitantes, com um PIB próximo a 500 bilhões de dólares e uma economia bastante internacionalizada? Bem, as transações bancárias são interrompidas, os cartões de crédito deixam de funcionar, a bolsa de valores não opera, aviões não podem decolar, importadores não importam, exportadores não exportam, coletores de impostos não coletam. A lista seria gigantesca, por isso resumiremos em uma única frase: a economia trava.
E Mubarak se deu conta de que, apesar de poder desativar a internet com um levantar de dedos, não podia arcar com o pesado custo econômico do seu desligamento. Sua ousadia durou pouco, muito pouco. Após apenas cinco dias, ele decidiu religá-la. Era necessário reativar a economia, ainda que fosse preciso aturar mais uma vez o #foramubarak. Mas já era tarde. O descalabro econômico era profundo demais, a revolta popular era incontrolável e o pescoço do déspota corria grande risco. Com a ajuda da forte frágil internet, a turba da Praça Tahir terminou por vencer o ditador que há 30 anos governava o país. É Mubarak quem agora está offline.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda