Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A França que não diz amém

Na França, religião é assunto exclusivo da esfera privada, quase um tabu. Não se sabe ao certo o número de fiéis das diversas religiões, pois essa pergunta não consta do questionário feito pelo censo populacional. Os católicos sentem-se discriminados, considerados cafonas por declararem sua fé, quando a maioria das pessoas parece viver totalmente distante da religião.


Nesse contexto de laicidade exacerbada e reivindicada, não é de admirar o acalorado debate sobre a cobertura que a mídia francesa fez da morte do papa João Paulo II. Aliás, o debate em torno de idéias políticas é o esporte preferido dos franceses – que têm um espírito combatente sempre prestes a despertar.


A República francesa é laica e muito se orgulha da lei de 1905, que separou a Igreja do Estado. Os franceses agnósticos ou ateus estão sempre atentos a qualquer desvio na separação entre os poderes de César e de Deus, mesmo acreditando piamente que ele não existe, ou justamente por isso.


Sinal religioso


Os políticos e intelectuais que instauraram a ‘République’ depois da Revolução Francesa foram severos críticos da igreja católica e de sua cumplicidade com a opressão do povo francês pela monarquia absoluta. Iconoclastas, os revolucionários derrubaram altares e fecharam igrejas. Hoje, querem mantê-las – sejam de que denominação forem, cristãs ou outras – longe de qualquer cumplicidade ou promiscuidade com o Estado.


Na França, causa mais do que estranheza a foto do chefe de Estado numa missa, mesmo considerando-se toda a tradição passada que pesa sobre o país que João Paulo II chamou de ‘primeira filha da Igreja’.


Os presidentes sempre se recusaram a participar de cerimônias que misturem os poderes e a maioria dos franceses, de direita e de esquerda, se manifestou contra a menção da ‘herança cristã’ na Constituição européia. Este foi outro debate que colocou agnósticos em pé de guerra contra os crentes – o próprio João Paulo II à frente desse exército. O papa e os crentes perderam essa guerra.


Por tudo isso, a presença de Jacques Chirac e do primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin na missa de domingo (3/4), na catedral de Notre Dame, no dia seguinte à morte do papa; as bandeiras a meio-pau, o luto oficial decretado e a determinação feita pelo ministro do Interior a funcionários graduados para que comparecessem às missas em todo o país foram vistos com um escândalo pela maioria dos intelectuais e jornalistas.


Chirac numa missa é espantoso, principalmente por ter sido o inspirador da lei que proíbe qualquer sinal religioso ostensivo nas escolas. Essa lei controvertida foi interpretada por alguns como feita sob medida para proibir o véu islâmico nas escolas.


Guerra santa


Não somente o envolvimento do Estado num acontecimento religioso foi alvo de críticas. O tempo dedicado à agonia e morte de João Paulo II em todos os jornais televisados, sobretudo nas redes públicas, foi considerado excessivo.


Os ‘libres penseurs’ franceses, que controlam com rigor a separação entre Igreja e Estado, acharam também um escândalo tanta reverência das autoridades e das emissoras públicas ao papa que, segundo eles, deve ser reconhecido apenas como líder espiritual dos católicos.


Béatrice Schonberg, apresentadora do jornal das 20h do canal público France2, foi citada nominalmente numa longa reportagem do jornal Libération, que fazia um inventário das derrapadas midiáticas contrárias a uma República laica. O título principal do jornal perguntava: ‘Morte do papa: laicidade a meio-pau?’ O ‘pecado’ – isto é, o delito da jornalista – foi ter-se referido ao papa como o ‘santo padre’. Outra escorregadela da mesma Béatrice: ela falou da gruta de Lurdes, onde ‘a Virgem apareceu a Bernadette Soubirou’ sem ter usado o condicional.


O ombudsman de France2, Jean-Claude Allanic, admitiu que ‘durante o período da agonia e depois na primeira hospitalização, France 2 explorou a emoção ao máximo. E informação não é somente emoção’.


Choveram e-mails nas redações dos jornais de esquerda, como Le Monde, Libération, L’Humanité e Le Canard Enchaîné, leitura obrigatória dos intelectuais ‘livres pensadores’. Um leitor internauta escreveu ao Libération para protestar que ‘num Estado laico no qual a religião católica conta menos de 15% de praticantes é vergonhoso e escandaloso que France2 [da rede pública] dedique todo o dia à cobertura da morte do papa’.


Outro leitor se perguntava se France2 teria se transformado em TeleVaticano. Outros falavam de ‘overdose midiática’. Um outro mencionava o artigo 1º da Constituição francesa: ‘A França é uma República indivisível, laica, democrática e social’. Houve quem lembrasse que as TVs públicas vivem (bem) da redevance, imposto pago por quem tem um aparelho de TV em casa, justamente para manter o serviço público audiovisual, e que os contribuintes desse serviço público não são todos católicos.


Libération publicou um editorial cujo título era ‘Papolatria’. O texto chamava o papa de ultraconservador que encarnou a volta do tacão religioso ‘presente em todos os integrismos que gangrenam a humanidade, sonhando submeter as sociedades a leis pretensamente divinas’.


As religiões em geral são responsáveis, segundo o texto, por travarem uma guerra santa contra a cultura moderna ‘que, fundada sobre o indivíduo, o livro arbítrio, a necessidade da dúvida e do saber, ameaça a ordem moral e espiritual da qual elas pretendem deter o monopólio’.


Idolatria kitsch


O irreverentíssimo Le Canard Enchaîné – espécie de Pasquim que deu certo e que recentemente foi o responsável pela denúncia de mordomia que derrubou o ministro das Finanças, Hervé Gaymard – deu em manchete ‘Para quando a separação da Igreja e da mídia?’ O subtítulo era: ‘A República católica’, que começava perguntando se os grandes princípios são solúveis em água-benta.


O comunista L’Humanité titulou ‘A França convidada a dizer amém’ e denunciou o Estado republicano que tomava ‘liberdades em relação a um assunto sensível como a laicidade’.


Le Monde afirmou em título que o luto oficial decretado pelo poder público chocava os ‘livres pensadores’. Um deles se perguntava se as autoridades francesas ‘teriam posto bandeiras a meio-pau para um grande imã ou para o dalai-lama’. Outro, o editor da revista La Raison, Christian Eyschen, falava de overdose midiática e denunciava uma ‘violação da liberdade de consciência’.


Eyschen lembrou todas as comemorações feitas em janeiro deste ano para festejar os 100 anos da lei que separou a Igreja do Estado. ‘Numa violação flagrante do texto, vê-se que religião não é mais um assunto privado’, disse.


Em editorial, porém, o maior jornal francês contemporizou, mostrando que o papa despertou um fenômeno de comunicação em nível planetário: as duas principais televisões do mundo árabe – Al-Jazira e Al-Arabiya – cobriram sua agonia e morte sem interrupção, tal qual as emissoras do mundo ocidental cristão.


Para o filósofo Michel Guérin, autor de Piedade, apologia atéia da religião cristã (‘Pitié, apologie athée de la religion chrétienne’), o mundo viu, mais ou menos, a mesma explosão de imagens que depois da morte de Lady Di. Esse fenômeno se explica pelo fato de João Paulo II ter globalizado a igreja católica, corrido o risco da rapidez, da comunicação, da transparência e da celebridade. Ele chama esse fenômeno de ‘idolatria kitsch’.