A sugestão implícita de Balzac, no seu Ilusões Perdidas, de que a profissão mais antiga do mundo, pode não ser necessariamente a prostituição, dá-se num contexto em que ele fala do jornalismo. Na época, o jornalismo era uma novidade. O escritor insistia em que se a imprensa não existisse – literalmente, para bem da sociedade – ‘não’ deveria ter sido inventada. Mas já que fazia parte do repertório do seu mundo – que se fizesse presente com tudo de ruim que pudesse acarretar. Na França de então, o jornalismo tinha um sentido unívoco e equívoco, pouco a ver com a informação. É possível que fosse por isso que nos dicionários portugueses antigos a palavra jornalismo não existia. Quem quer que publicasse suas opiniões em diários, era simplesmente ‘publicista’. Supunha-se que os jornais devessem servir menos como noticiários, do que como espaços para opiniões dos possíveis ‘publicistas’. Se alguém, enfim, encontrar algo de parecido com o que se tem hoje em dia, talvez não se trate apenas de uma volta ao passado.
De fato, para os brasileiros que tiveram uma experiência democrática antes dos tempos obscurantistas da ditadura, deve soar como uma advertência a mudança que houve, não só com a nossa imprensa. Até para além da segunda metade do século 20, superados os tempos de Balzac, portanto, os americanos principalmente (sempre eles) descobriram que a notícia custava dinheiro, um bom dinheiro. O jornal que literalmente ‘furasse’ os concorrentes, adiantando-se ao que ninguém tinha dado, era premiado com a compra quase compulsória da sua tiragem inteira por parte dos leitores. Os negócios se faziam, muitas vezes, na contramão dos interesses dos governos e dos grandes conglomerados empresariais. Ganhava a concorrência quem se mostrasse atento às novidades, mesmo que sob a ameaça de perder um ou outro anunciante.
Omitir equivale a mentir
Dizer que, hoje em dia, o silêncio é gritantemente mais lucrativo, parece rebarbativo – mas não deveria ensejar qualquer surpresa. Chega a ser patético: a revista que omite o nome do banqueiro bandido, parece ignorar que o texto do relatório que o incrimina é público. E que as pernas curtas da mentira tropeçam já no dia seguinte, quando a coisa vem a baila trazida ou pela internet. Ou pelo concorrente que muitas vezes até nem gostaria de contar a história toda.
Renato Pompeu, jornalista veterano de larga experiência na imprensa graúda, tempos atrás, definia as coisas da seguinte maneira: na época em que as denúncias, como novidade, valiam mais que o silêncio, como corrupção, o repórter que adentrava a redação, ao ser inquirido pelo editor, normalmente era exaltado e ganhava a manchete de primeira página, se dissesse: ‘Tenho uma notícia que ninguém deu…’ Conforme Pompeu, hoje as coisas se dão forma contrária. Ao repórter que disser ter uma notícia que ninguém deu, quase certamente receberá do editor a advertência de que ‘se ninguém deu’, o fato não tem importância alguma.
Entre o ‘furo’, ou seja, a notícia, e o silêncio, vale até muito mais a ‘barriga’, isto é, a mentira. Ou, como dizia Mário Quintana, de forma amena, vale mais a história que se esqueceu de acontecer. A isso os jornais chamam de direito à ‘interpretação’. Omitir equivale quase sempre a mentir – mas isso importa?
Tudo seriam meias verdades
Como certas questões são irretorquíveis, haja prêmio à dubiedade das respostas. Nas últimas semanas, tornou-se insuportável à grande imprensa admitir que talvez (‘sabrá Dios’, como dizia um bolero, no tempo dos boleros), a presidenta Dilma Rousseff seja também ‘competente’, além de não fazer uma política muito diferente da de seu antecessor. Para o primeiro caso, a questão se torna premente: se a presidenta fizer uma boa gestão, poderá ensejar o ‘pior dos mundos’ – para eles, naturalmente – e então, poderá vir a ser reeleita. Para o segundo, porém, será a volta do ‘ogro’ – leia-se, ‘sapo barbudo’. Como se sabe, Lula saiu da presidência com mais de 80% de popularidade. Fica a questão: precisará sair de casa para ser reeleito uma segunda vez?
Na dúvida, a recorrência a tal ambiguidade é sempre uma boa ideia. Os editores da Folha, por exemplo, devem ter morrido de rir da manchete – das poucas – que a presidenta mereceu do jornal em sua ida à China. Lá, à parte os bilhões de dólares prometidos, ela teria feito o inevitável, ou seja, como disse o jornalão: ‘Dilma vende direitos humanos na China’. Para o incauto leitor, meia palavra basta: a presidenta conseguiu, sim, o que queria – mas ‘vendeu’ os direitos humanos no Brasil. ‘Espera aí’, dirá o autor do título da manchete, ‘não é nada disso: o que a Folha quis dizer é que a presidenta `vendeu´ não no sentido em que se pode entender a manchete – mas que agiu como uma publicitária: foi à China e lá expôs o fato positivo de que os direitos humanos são respeitados no Brasil.’
Digamos que o verbo ‘vender’ não tinha um sentido que tem: era uma referência ao valor dos ‘direitos humanos’. Já que tudo é negócio, os chineses teriam tido uma informação positiva sobre o Estado democrático – ‘comprável’ – do país. Tudo seriam meias verdades. E quanto mais ambígua a notícia, tanto mais os jornalões se livram da pecha de mentir, por omitir.
O corolário da omertà
Quanto vale o silêncio? Para não difundir que o presidente Barack Obama apontou o Brasil como exemplo a ser seguido pelos Estados Unidos, como afirmou o mandatário americano em seu discurso de um mês atrás, talvez o silêncio renda uma boa publicidade dos governos de oposição. Ou, quem sabe (o que é mais razoável) renda o desconhecimento do grande público de que hoje as coisas podem estar melhores do que nunca estiveram. E que, afinal, o Brasil não mudou nada – continua aquela porcaria de antanho; ou como dizia o ex-presidente FHC – aludindo a Nelson Rodrigues –, persistiríamos em nossos complexos de vira-latas.
A questão tem muitas dimensões. O senador Aécio Neves foi flagrado com a carteira de habilitação de motorista já vencida. Um erro grave, mas não imperdoável: todos podemos nos esquecer de que não renovamos a carteira e que isso implica pontos negativos na nossa condição de motorista. O grave, contudo, foi um senador da República negar-se a fazer o teste de bafômetro. Fica a suposição de que tivesse ingerido bebida alcoólica além da conta. Como tratar a coisa? Dando a notícia, com o direito ao político de se defender. A grande imprensa – uma vez que ele possa vir a ser o futuro candidato da oposição – e uma vez concedendo à notícia – que de resto chegou a ser (pouco) difundida pelas rádios e televisões – tratou que a coisa fosse esquecida o mais rapidamente possível. Acontecesse, porém, com qualquer político da situação, ocupasse ou não um cargo relevante, as manchetes estariam berrando, haveria gritos de toda a ordem ainda hoje a provocar manchetes nos jornais.
Casos do tipo, são tão numerosos, tão flagrantes que nem vale a pena mencioná-los. O pior, contudo, parece ser o silêncio. Vale a velha máxima – se o jornalão não deu, ninguém sabe o que aconteceu. Mas será que ela vale mesmo? Hoje, muito menos. E se a tiragem dos jornais está diminuindo, não é apenas por conta do mercado, além dos jornais e jornalistas. Esses cumprem a sua moda, o corolário da omertà: o silêncio será sempre inevitável tanto se for para evitar que os governos que eles acham não lhes convir – puder se locupletar e tirar alguma vantagem junto à opinião pública, quanto o contrário: se a discussão sobre as deficiências do transporte público implicar a cobrança da ineficiência de certos governos, ‘amigos da casa’ – instaure-se o silêncio.
Os renegados que ostentam a máscara de esquerda
Parece ser assim com tudo. Baudelaire, quase ao mesmo tempo que Balzac, assacou uma conclusão interessante a propósito da imprensa da época: ela silenciava sobre o que não era sucesso. Para dizer o óbvio: ela só se permitia discutir o que ela mesmo incensava. A imprensa só fala sobre o sucesso – constatava o desencantado poeta, como a dizer ser praticamente impossível descobrir ou insistir na novidade. Não naquela com endereço certo, urdida pelo mercado – como o das artes, por exemplo –, pois essa seria sempre louvada. Não foi por acaso, em suma, que o próprio Baudelaire seria combatido e ignorado.
Passado mais de um século, a regra continua. E se a bom tempo a Escola de Frankfurt, sem muitos filosofismos, constatou que a indústria cultural exerceria o seu poder para impor as regras do sistema (leia-se mercado), não é por outra razão que temos uma cultura administrada. O silêncio sobre os artistas que não cumprem a cartilha da academia faz-se sempre em consonância com os interesses da tal indústria. Continuamos como dantes no quartel de Abrantes. E, no caso, sob a égide de um paradoxo.
De tanto ser xingada por não acolher a vanguarda nas artes, a academia e a indústria uniram-se na consideração de que há uma ‘vanguarda confiável’ – aquela que se define como a ‘contestadora a favor’ – e que se locupleta por aparecer perante a opinião pública como enfant térrible, por ‘ter a coragem’ de ‘arrostar’ os governos e as instituições, principalmente se forem comandadas por gente de esquerda. E que não corre risco algum ao xingar o poder num país onde, por enquanto, vigem regras democráticas. Ou contra as gentes que os jornalões querem ver longe dos órgãos culturais: eles seriam incômodos por proporem que a vanguarda pode estar do lado do povo e não longe dele, como nas bienais, e salas de concertos. Ou longe dos shows da moda.
Alguém já desafiou que se encontrassem na grande mídia jornalistas de esquerda. Apostava que isso não existiria. Evidentemente, ninguém topou o desafio. Afora um ou outro cronista, perderia. Como perderia se apostasse em encontrar algum artista de esquerda, ou contra o sistema, a ser festejado como são os de direita. Há, sim, os renegados que ainda ostentam a máscara de esquerda, coisas de antanho. Esses são sempre bem vindos, obrigado.
Nada sobre a proibição de tocar a peça
É curioso: nunca a era da informação foi tão pródiga em desinformação. Um exemplo relativamente desimportante, mas que mostra como funciona a coisa, deu-se há pouco em São Paulo. Durante a semana inteira anunciou-se a estreia mundial, pela Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado), de uma peça do compositor Willy Corrêa de Oliveira. É dos poucos artistas brasileiros que não compõem as panelas acadêmicas – embora tenha sido professor na USP. E é dos raros, igualmente, que não se considera apartado da política em qualquer sentido. Não se define como um saudoso do estalinismo, mas é um anticapitalista com todo o alarde que isso possa comportar num mundo onde – máxime – não ser neoliberal já o colocaria como avis rara entre seus iguais. Por motivos entre os quais ele alinha a certeza de que sua obra não seria bem executada pela orquestra, já que a sua partitura é de difícil execução, ele cobrou a promessa explícita, de que a orquestra a ensaiasse bastante. Para tanto, combinou com o maestro Isaac Karabtchevsky encontrá-lo, dias antes do início dos ensaios, justamente para alertá-lo sobre alguns procedimentos a serem seguidos pela orquestra, e que não estão tão claros na partitura que escreveu. Como o encontro não se realizou, e a orquestra faria apenas três ensaios para executar a peça, Willy Corrêa de Oliveira pediu que retirassem a obra do concerto. Para o mundo restrito da música clássica, em outros tempos, seria uma notícia quase bombástica: sugere-se (e é sempre verdade) que, quando uma orquestra leva a sério o compromisso de tocar bem, um compositor se sinta honrado de ter sua música executada por um conjunto tão bom quanto a Osesp. Mas a possibilidade de que mesmo uma orquestra da sua qualidade, muito dificilmente tocaria a contento a partitura, o compositor desistiu de contar ‘como glória’ ter a estreia mundial de sua peça pela Osesp.
O que se quer dizer é que, no frigir dos ovos, brigas de compositores com regentes, ou com orquestras, não são tão frequentes para serem ignorados. No dia do concerto, porém, preferiu-se não se contar aos ouvintes e aos leitores uma história, afinal, no mínimo polêmica. No entanto, o jornalista indicado pela Folha para escrever sobre o concerto simplesmente omitiu o fato. Preferiu fazer uma matéria toda em torno da nona sinfonia de Gustav Mahler – compositor consagrado de quem a orquestra já tocou quase toda a obra orquestral, ao longo de sua existência mais que cinquentenária. Em suma: ao lugar-comum repetido à exaustação nas escolas e nas redações de que notícia é o homem morder o cachorro, preferiu-se o absolutamente convencional de anunciar, pela undécima vez, que a orquestra iria tocar uma obra conhecida de um compositor consagrado, com descrição até bem feita sobre as observações do maestro nos ensaios. Mas nada sobre a proibição da orquestra de tocar a peça do Willy.
As considerações do velho Balzac
O que fica do episódio, enfim, é que, para os jornalões, conforme a conveniência, a notícia, a grande notícia, é o cachorro morder o homem. Por que omitir uma história em tudo interessante? Certamente porque a direção da orquestra não quis. E porque assim ninguém dá a noticia que ninguém deu. É essa a lógica.
Mas é essa a lógica para tudo mais. A fim de não informar que o presidente Hosni Mubarak foi tirado do hotel em que se auto-exilou pela mesma multidão que o apeou do poder, um mês antes, a grande imprensa seguiu a cartilha imposta desde fora, do monopólio das agências de notícias, de que já não há mais nada no mundo árabe, fora a Líbia e a Síria, que possa interessar. Para os leitores ocidentais, em suma, faz de conta que o movimento das massas egípcias já não existe. Que o mundo árabe voltou à estaca zero. Que as forças armadas é que mandam e fazem, de novo, no Egito, como a sra. Hilary Clinton gostaria que acontecesse, já que não pode evitar a queda de Hosni Mubarak.
Parecerá relevante constatar que de Seca a Meca é assim, hoje, não só no Brasil? Deixemos aos leitores meditarem sobre as considerações do velho Balzac.
******
Artista plástico e jornalista