Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A História merece respeito

A crise no Senado tem produzido alguns episódios que rivalizam com o melhor dos programas televisivos do gênero besteirol. Na sessão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania de terça-feira (18/8), quando a base governista tentava criar obstáculos ao depoimento da ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira sobre o suposto encontro com a ministra Dilma Rousseff, o líder Aloísio Mercadante (PT-SP), advertiu, em tom solene, o presidente da Comissão, Demóstenes Torres (DEM-GO).

– Senador Demóstenes, tenha cuidado com o autoritarismo. Veja como acabou o Luís 14.

Imediatamente ergueram-se vozes no plenário corrigindo o equívoco do parlamentar petista:

– Não foi o Luís 14, foi o Luís 15.

Emenda pior que o soneto. Quem subiu ao patíbulo em 1793 foi Luís 16. Seu tetravô Luís 14 (1638-1715), o todo poderoso Rei Sol, a quem se atribui a frase ‘o Estado sou eu’ (l’État c’est moi) morreu na cama após governar a França com mão de ferro por cinco décadas. Seu bisneto e sucessor, Luís 15 (1710-1774) seguiu o figurino monocrático sem balançar no trono e também faleceu de causas naturais. A revolta popular contra o poder absoluto exercido por ambos durante quase um século e meio explodiria no reinado do neto de Luís 15, Luís 16 (1754-1793). Este, sim, na voragem da Revolução Francesa, foi guilhotinado em Paris no dia 13 de janeiro de 1793.

O escorregão dos senadores mostra que argumentar com exemplos históricos – prática freqüente no debate público – pode ser risível. Se cometido na escola, custaria ao aluno relapso, no máximo, uma nota vermelha no boletim. Às vezes, porém, o mau uso da História ultrapassa os limites do tolerável.

Banalização do holocausto

É o caso do senador José Sarney, ao reclamar da suposta perseguição que lhe move o jornal O Estado de S.Paulo. Num infeliz arroubo oratório, o presidente do Congresso bradou em plenário, no dia 17 de agosto, que o jornal ‘vem se empenhando numa campanha sistemática contra mim, ou adotando uma prática nazista, que era aquela que eles adotavam de acabar com as pessoas, denegrir sua honra, a sua dignidade até, com os judeus, levá-los à câmara de gás’.

Já o colunista João Pereira Coutinho, em artigo na Folha de S.Paulo (18/8/2009), ao sustentar a discutível tese de que o fumo passivo não é prejudicial à saúde, também relembrou os tempos sombrios do Terceiro Reich. Para ele, o dogma [segundo o qual o fumo passivo causa câncer] não é apenas fantasioso. ‘É também perigoso porque estabelece de imediato uma divisão moral entre os agentes da corrupção (os fumantes) e as vítimas inocentes (os abstêmios). É só substituir `fumante´ por `judeu´ e `abstêmio´ por `ariano´ para regressar a 1933.’

Não contente com a imprópria comparação, o colunista conclui: ‘Razão tinha Karl Kraus quando afirmava, na Viena de inícios do século, que o antissemitismo era tão normal que até os judeus o praticavam. Péssimo presságio.’

A manifestação de José Sarney, ainda que truncada pela falta de lógica, é claramente ofensiva à memória dos que perderam a vida nas câmaras de gás. Os milhões de judeus (sem esquecer ciganos, homossexuais, dissidentes políticos, prisioneiros de guerra) assassinados pelo regime nazista não respondiam a qualquer acusação formal. Sobre eles pesava apenas a fatalidade de serem o que eram. Condenados sem crime, não gozavam do direito de defesa que é amplamente assegurado ao senador e seus familiares sob investigação pelo poder Judiciário.

Ofensa à memória das vítimas

As mesmas práticas democráticas garantem a polêmica em torno da lei que começa a se implantar em São Paulo. O articulista João Pereira Coutinho, usando de uma prerrogativa que certamente não teria na Alemanha de Adolf Hitler, contesta com absoluta liberdade, ainda que com frágeis argumentos, a proibição ao fumo em ambientes fechados.

É bom lembrar que a medida foi aprovada após ampla discussão pública e acirrado debate parlamentar na Assembléia Legislativa paulista. O PT, por exemplo, votou contra, por considerá-la atentatória aos direitos individuais. Os questionamentos ainda persistem. Tramita hoje no Supremo Tribunal Federal ação sobre a matéria e a Advocacia Geral da União, comandada pelo jurista Antônio José Toffoli, já emitiu parecer considerando inconstitucional a lei antifumo. Caberá à maior Corte Judicial do país, livre e soberanamente, dar a palavra final sobre o assunto. Qualquer semelhança com os tribunais nazistas é mera e lamentável figura de retórica.

A simples comparação com o totalitarismo do Terceiro Reich, avocada por José Sarney em defesa de uma suposta inimputabilidade e por João Pereira Coutinho em prol da confraria dos fumantes já seria, em si, um desrespeito às práticas democráticas vigentes no Brasil.

O que mais espanta, no entanto, é o à vontade com que os autores das duas manifestações, na ânsia de validar argumentos discutíveis, ofendem a memória das vítimas do Holocausto e banalizam aquele que é, certamente, um dos capítulos mais trágicos da História da humanidade.

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Jornalista e escritor