Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A hora e a vez da dromomania

A se julgar pelo que dizem políticos e imprensa, as ruas parecem estar-se impondo como sujeito da história nacional corrente. À direita ou à esquerda, na situação ou na oposição, é geral o sentimento bem expressado pelo petista José Guimarães, líder do governo na Câmara dos Deputados: “As ruas mostraram que querem mudança. Ou fazemos ou as ruas nos engolem”.

Ou, então, avalie-se o que disse um dos caciques do PMDB a propósito da transferência da articulação política do governo a Michel Temer: “Foi uma decisão muito arriscada. Nós vamos ficar com o cargo e a responsabilidade de resolver a crise. E quem vai ficar com as ruas? Não seremos nós”.

Já em junho de 2013, quando elas fizeram a sua irrupção na pasmaceira burocrática do espaço público, tivemos oportunidade de observar que, do ponto de vista das relações intersubjetivas, o espaço das ruas é estriado, sulcado, enrugado, quer dizer, não tem a lisura do traçado geométrico dos urbanistas, a não ser em cidades ultraplanejadas.

Aliás, quando se atenta para o étimo latino de “rua”, ela é, em princípio, uma ruga na paisagem. A palavra vem do latim “ruga” e expande-se por metáfora e metonímia. Metaforicamente, ganha o significado de “caminho ladeado de casas”; metonimicamente, séculos depois da metáfora, designa o conjunto dos habitantes da rua, especialmente o povo em suas virtualidades insurrecionais.

Pressão  retórica

Ruga na paisagem urbana, a rua detém potencialmente uma energia cinética capaz de impulsionar as massas. Em Massa e Poder, Elias Canetti fala de energia própria e de um estranho poder de atração: “Uma aparição tão enigmática quanto universal é a da massa que surge repentinamente onde antes não havia coisa alguma (…). Nada foi anunciado, nada era esperado. Repentinamente tudo está cheio de gente. De todos os lados pessoas começam a afluir como se todas as ruas tivessem uma única direção”.

Por um lado,  isso é festivo e auspicioso.  Tanto que para João do Rio, o grande cronista carioca do início do século passado, a rua tem alma e até mesmo uma musa: “É a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida”.

Por outro, entretanto, vale prestar atenção em que a história etimológica da palavra rua registra também uma equivalência entre ela e o “estar louco”. De fato, a rua é lugar de indeterminação, de inesperado, de risco. Bem o sabem os cronistas da Revolução Francesa, que avaliaram as consequências  da tomada das ruas de Paris pelas massas procedentes dos subúrbios e dos campos, diminuindo a distância entre o populacho e o centro do poder.

Historicamente, não são jurídicos apenas os aparatos instituídos pelo poder dirigente. Na Revolução, todas as estradas francesas tornaram-se nacionais em virtude de sua ocupação popular. Ali ganhava vigência uma velha divisa do Direito Romano: “Ubi pedes, ibi pátria”. Em outras palavras, a pátria acontece sob os pés da cidadania.

Evidentemente, outros são os tempos, velhas são as fórmulas que se invocam por pressão retórica. O fato, porém, é que as ruas, mais do que partidos ou movimentos sociais organizados, vêm fornecendo os padrões de avaliação da convulsão política. Assim é que o relator do projeto de terceirização na Câmara de Deputados disse ter achado muito graça da marcha convocada pela CUT, que reuniu apenas 400 pessoas em São Paulo. Outros tranquilizaram-se com ruas praticamente vazias em vários estados.

Agitação poular

Resta saber o que efetivamente dizem as ruas. Assim como parecem velhas e superadas as propostas de apaziguamento levadas a público por ministros, parece-nos também que começam a ficar gastas as invectivas do “fora isso!”, “fora Fulano!”

Tempos atrás, Paul Virilio, pensador francês que vem estabelecendo nexos entre cultura, política e velocidade, sugeriu a palavra “dromomania”, algo como “mania de movimento”, para designar a agitação popular nas ruas.

Não, a palavra não tem sentido pejorativo, mas suscita uma interrogação: estarão os dromômanos tomando o lugar da política?

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro