O jornal lisboeta Público dedicou razoável espaço (13/4/2005) a uma manifestação popular contra a estilista Fátima Lopes. Fátima goza de excelente reputação, suas coleções de moda são sinônimas de sucesso em Portugal. O problema é que utilizou peles de animais em suas últimas criações, despertando a ira de ativistas ecológicos.
Em Braga (norte do país), onde estive para um congresso sobre ‘o trágico e o grotesco’, a reação à estilista mereceu atenção por parte de intelectuais, dentre os quais alguns franceses. É que não se trataria mais apenas de particular conscientização ecológica de uns poucos, e sim de um sentimento ampliado junto a largos setores das populações urbanas no sentido de que a ética estende hoje o seu alcance até o reino animal. A estilista Fátima Lopes não infringiu lei alguma, agiu dentro das normas regulamentares de caça, mas perturbou a atual ética imediata dos ecologistas, em vias de grande popularização.
‘Uma grande perda’
A mídia é parte fundamental em todo esse processo. As reportagens constantes sobre a movimentação ecologista vêm conformando uma atitude de preocupação cada vez maior com a preservação do meio ambiente em todas as suas formas, mas principalmente a da fauna. Ainda repercute, por exemplo, um incidente ocorrido em novembro passado nos Pirineus franceses, quando uma ursa foi morta por um caçador.
A história tem antecedentes peculiares: como ali já não existissem praticamente mais ursos, as autoridades haviam mandado buscar alguns exemplares na Eslovênia, com vistas a repovoar a região. Dito e feito. Mas como a memória midiática tem curto efeito, esqueceu-se de avisar aos pequenos caçadores que os bichos grandes estavam de volta. Aconteceu então a um deles topar de frente com uma ursa e seus filhotes. Em casos como este, consta, não havendo tempo para correr, é matar ou morrer. O caçador teve sorte com a primeira hipótese.
A mídia e os ecologistas fizeram um barulho infernal, ao mesmo tempo em que batizavam a ursa morta de ‘La Cannelle’ (A Canela), sabe-se lá por quê, dando partida a um verdadeiro reality show, com todas as dramatizações e as besteiras que o gênero comporta. Basta dizer que o presidente francês Jacques Chirac lamentou publicamente a morte da mamãe-ursa, considerando-a ‘uma grande perda para a biodiversidade’.
‘É a vida’
Esse tipo de coisa parece, e é, remoto aqui no Brasil, onde a chacina gratuita de 30 pessoas por policiais celerados não chega a suscitar nenhuma manifestação de rua, nenhum abraço coletivo à Lagoa capitaneado por próceres da vanguarda política. Remoto na vida real, mas possível na telerrealidde (o real construído pela mídia eletrônica), tal como descreve o pensador português José Gil em livro recente:
‘Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação, mortes palestinas e israelitas, descobertas de centenas de vítimas taliban asfixiadas em contentores no Afeganistão, surge uma notícia que, como uma luz divina, redime todo o mal espalhado pela Terra: nasceu um bebê panda no Zoo de Pequim. O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com um tom sábio, ‘É a vida’ (Portugal, hoje – o medo de existir, Edições Relógio d´Água, Lisboa).
‘É a vida’ significa: não há nada a fazer, o mundo é assim mesmo, conformemo-nos. Na telerrealidade, tempo e espaço devidamente abolidos, tudo se iguala sob o olhar complacente do Deus-Mercado, voltado para o imperativo moral-mercantil da anestesia dos espíritos, ao modo de um super-Prozac. O animal, esse ‘objeto vivo’, sem os incômodos da fala e com a tranqüilização de um certo tipo de afeto, serve de álibi para a apatia política, para a imobilização da consciência e da ação diante da enormidade dos males humanos.
Claro, os animais podem ser adoráveis, impõe-se protegê-los da crueldade magnificada pelo poder de destruição tecnológico e pela própria sanha de fatias do mercado, Mas isso pode também ser o biombo para a neutralização da consciência inquieta e indignada com a deterioração das condições humanas de vida.
E nesse meio tempo somos avassalados pelo incremento de outras animalizações, que variam da ferocidade das chacinas ao bestialismo das novas formas assumidas pelo Estado liberal. É que, no fundo, tomando decisões cívicas (como o ato de votar) a partir de mero afeto apolítico, por incitação do marketing eleitoral, fazemos a opção pela pesada metáfora do animal.
Por isso, à tranqüilização rebarbativa de frases do tipo ‘é a vida’, que pontuam o noticiário eletrônico de cada dia, é urgente opor um jornalismo de combate capaz de alertar as consciências para o perigo das opções eleitorais vindouras. Como numa conhecida fábula de ficção científica, de Clifford Simak, cujos sinais já se percebem no horizonte, os animais podem vir a tomar de vez o poder.