Nas sociedades de cultura predominantemente escrita, a imprensa desempenha papel crucial na produção/reprodução da identidade de um povo. Se falamos de uma cultura provinciana, com poucos contatos com o globo, como o é a cultura goiana, então, jornais de grande circulação regional exercem papel mais crucial ainda na formação cultural.
No estado de Goiás, notório por sua forte cultura autoritária, de ranço coronelístico, grosso modo, há dois grandes jornais, um com maior penetração entre as elites e camadas médias mais altas (genericamente conhecidas no Brasil como classe A e B) e outro com forte entrada entre as camadas mais baixas. Ambos, de qualquer modo, restringem bastante à difusão de ideias que possam ser vistas como ameaça a identidade local: autoritária e elitista.
É conhecido dos vestibulandos do Brasil a capacidade do aluno goiano de ‘tomar’ as vagas para Medicina em vários estados do Brasil. Não tenho dados estatísticos, mas pelo que observo Goiás é o maior formador de médicos do mundo. Quase todo jovem goiano quer ser ‘Doutor’, título por muitos aspirado. A suposição que faço é que a posição alta na hierarquizada sociedade goiana de coronel, transmutou-se, com a modernidade, para a de ‘Doutor’: ‘Doutor’ médico ou ‘Doutor’ advogado. Esse status, no entanto, não é compartilhado pela civilização ocidental e mesmo nos grandes centros do Brasil ele está mais nuançado.
Nada mais esperado entre os grupos humanos que eles defendam a sua cultura, contra tudo e todos que a ameacem. No entanto, é importante lembrar também que o humano é dotado de razão e que ele, o humano, poderia fazer alguma reflexão questionando a si próprio. Nesse sentido, escrevi um simples artigo apontando para algumas breves reflexões acerca do título de doutor e que foi completamente vetado pela imprensa goiana. Assim, a imprensa local contribui ativamente para a preservação da identidade autoritária e elitista que predomina no estado. E muito mais pelo silêncio que a censura velada produz. Segue, na íntegra, o texto.
O tratamento de doutor: subserviência e anacronismo
No processo de formação da sociedade brasileira, a escravidão e suas mazelas foram centrais, pois contribuíram para a formação de mentalidade elitista, racista e avessa ao trabalho manual. Se, no início do século 18, o jesuíta Antonil escreveu no seu livro Cultura e Opulência do Brasil que ‘o ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos’, um século depois, já no Brasil independente, poderíamos atualizar o jesuíta e dizer que o ser doutor era o que muitos pretendiam, querendo com isso se referir principalmente aos médicos e bacharéis de direito. A tal posição, alta na hierarquizada sociedade brasileira, era dispensado o uso do doutor, seja como título conferido aos bacharéis de direito pela Lei do Império de 11 de agosto de 1827, seja como forma de tratamento pessoal.
Hoje, no Brasil do século 21, seria mais conveniente o uso do título de doutor para se referir apenas às pessoas que, por mérito acadêmico, obtiveram o cobiçado título (se a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases – revogou ou não a Lei do Império é discussão irrelevante para o âmbito desse artigo). Para se obter o título em discussão, em termos gerais, exige-se um longo caminho universitário, que ultrapassa em muito a simples graduação: de práxis, após o curso superior, o estudante que segue a vida acadêmica, em busca do referido título, cursará uma especialização, que tem duração variável entre seis meses e dois anos. Posteriormente, ingressa no mestrado, mas, para tanto, precisa ser aprovado em processo seletivo, no qual é avaliado o seu projeto de pesquisa – que propõe desenvolver durante os dois anos de atividade –, é avaliado em uma língua estrangeira e em teoria do conhecimento na área em que pleiteia ser mestre. Obtido o título de mestre, após defesa de dissertação, o estudante estará apto, formalmente, a ingressar no doutorado. Mas então ele enfrentará processo seletivo em que terá que ser aprovado em duas línguas estrangeiras, ter a aprovação por banca formada por doutores de projeto para desenvolvimento de conhecimento bastante aprofundado em sua área, ser aprovado em prova de teoria do conhecimento e, normalmente, ainda se avalia o Currículo Lattes do candidato. Aprovado, o doutorando terá quatro anos para desenvolver a sua tese e, se conseguir defendê-la diante de banca formada por cinco doutores, finalmente obterá o título. É caminho bastante áspero, quase sempre solitário e, diga-se, com poucas perspectivas econômicas. No Brasil, entre 1996 e 2008, por exemplo, 87. 063 pessoas obtiveram o título de doutor. Estes, normalmente, não exigem de ninguém o tratamento de doutor, contudo, no espaço acadêmico, é de práxis usá-lo para se referir àqueles que chegaram a esse notório saber.
Voltemos aos velhos doutores. Quando a sociedade brasileira dispensava – ou dispensa? – o tratamento de doutor a médicos e advogados, o que estava colocado não era o notório saber, pois este é adquirido em caminho mais rigoroso que o conferido pela graduação, mas uma forte distinção social, que separava os homens ricos e bem nascidos da maioria da população brasileira. Tal separação remonta ao tempo da escravidão e à existência de uma sociedade fortemente desigual e injusta (tempo em que os estudantes universitários eram raros e frequentemente filhos dos grandes proprietários, o que eles mesmos seriam anos depois).
Sem subordinação
As questões que se sugerem são: o tratamento de doutor, dispensado ainda a estes profissionais, não é anacrônico? Não nos remonta a um tempo do qual não temos saudade? Não nos remonta também a um modelo de sociedade que queremos superar decididamente? Suponho que sim, já que, desde o movimento iluminista, que nós, ocidentais civilizados, esforçamo-nos para construir uma sociedade marcada pela igualdade. Logo, por que devemos tratar um(a) médico(a) de maneira diferenciada de um(a) farmacêutico(a), empregando, ao se referir àquele, o título de doutor (que ele normalmente não possui)? Um(a) advogado(a) dispõe mais deferência que um(a) professor(a)? Não somos todos iguais, independente da profissão que exercemos?
Assim, faz-se mister abandonar o tratamento diferenciado aos grupos sociais para que possamos suplantar nosso passado escravista. Deixemos o título de doutor para o universo acadêmico e tratemos os concidadãos, a todos, com o devido respeito, entretanto sem a subordinação a que o tratamento de doutor, por séculos, significou.
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Historiador, Goiânia, GO