Um brasileiro de classe média alta que leia diariamente os três jornalões nacionais (Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo), leia também um jornal local – se residente em Brasília, digamos, o Correio Braziliense –, tenha o rádio de seu carro sintonizado na CBN ou na Band, e frequentemente assista ao Jornal Nacional da Rede Globo, recebe a informação ‘plural e diversa’ necessária à formação de uma ‘opinião pública independente’ no ‘mercado livre de idéias’, fundamento da democracia?
Será que esse brasileiro sente seus diferentes pontos de vista ‘refletidos e emulados’ na ‘esfera pública’? Seria ele um membro padrão da ‘esfera pública’ ou apenas parte da ‘esfera pública’ composta por leitores/ouvintes/telespectadores destes veículos? Será que existe uma ‘esfera pública’ ou existem muitas e até excludentes ‘esferas públicas’?
Será que esse brasileiro sabe o que realmente se passa no país? Sua opinião é a ‘opinião pública’ dominante ou é apenas a opinião dos leitores/ouvintes/telespectadores do que esses jornais, emissoras de rádio e TV, uniformemente, decidem transformar em ‘notícia’?
Afinal, quantas ‘esferas públicas’ podem coexistir num país das dimensões e com as desigualdades sociais do nosso? Quantas ‘esferas públicas’ existem onde a influência da grande mídia impressa, por exemplo, não é determinante ou é inexistente (o que dizer dos cerca de 10 milhões de leitores da Folha Universal o jornal – gratuito – de maior tiragem no país, acima de 2,3 milhões por edição semanal?
Da mesma forma, haverá uma ‘opinião pública’ ou coexistem muitas e variadas ‘opiniões publicas’, ‘fotografadas’ estatisticamente por meio de intervenções (pesquisas) pautadas por interesses e questões alheios a ela ou a elas?
Essas (e muitas outras) questões, que em geral não são discutidas pelos colunistas da grande mídia, além de fundamentais escondem os pressupostos básicos sempre implícitos na definição do papel da ‘imprensa’ nas democracias liberais.
O supra-editor
Bernardo Kucinski tem afirmado que a grande mídia brasileira funciona como se fosse diariamente editada por um ‘supra-editor’. Esse fictício editor único faz com que ela ‘seja a favor das mesmas posições e contra as mesmas posições’. Os exemplos são inúmeros:
‘A grande mídia é a favor das privatizações, da contenção dos gastos públicos, da redução de impostos; da obtenção de um maior superávit primário, da adesão do Brasil à Alca. E é contra a criação de um fundo soberano, ao controle na entrada de capitais, ao Bolsa Família, à política de cotas nas universidades para negros, índios e alunos oriundos da escola pública, à entrada de Venezuela no Mercosul e ao próprio Mercosul’ (cf. Diálogos da Perplexidade; Editora Fundação Perseu Abramo, 2009).
Mais recentemente, poderíamos acrescentar: a unanimidade da grande mídia na defesa de uma CPI para investigar a Petrobras e contrária à proposta do governo de exploração do pré-sal, contrária à política externa brasileira, além da unanimidade em relação ao tratamento da corrupção no Parlamento.
Sobre esse último ponto, o sociólogo Jessé de Souza, em artigo publicado no caderno ‘Aliás’ do Estado de S.Paulo (6/9/2009) – um jornalão, é verdade – sob o título ‘O Estado de todas as culpas’, comenta a ‘estrutura invisível e profunda’ do debate que a mídia propõe e afirma:
‘O Estado é sempre suspeito de `politicagem´ e de `aparelhamento´ por indicações políticas e o mercado é definido como instância `técnica´, ou seja, reflexo da `racionalidade pura´ e do `cálculo técnico´. Um é a esfera do `privilégio inconfessável´ e o outro o reflexo da `razão técnica´ supostamente no interesse de todos. É isso que explica o foco constante e diário na `corrupção política´ como a lembrar ao público onde está o mal e onde está o bem.
Como tudo no mundo social, essa é uma realidade `construída´, fruto de uma leitura seletiva e interessada do mundo.’
Papel da mídia nas democracias
Poderá haver alguma dúvida de que a grande mídia brasileira, apesar de rusgas ocasionais, funciona de maneira ideologicamente uniforme? Funcionando assim, como justificar-se a si mesma como ‘mediadora’ dos debates de interesse coletivo numa (única?) ‘esfera pública’ ou formadora de opiniões independentes no ‘mercado livre de idéias’?
Um aspecto interessante sobre essa uniformidade é que a metodologia de pesquisa usualmente utilizada para acompanhamento das coberturas da mídia não dá conta de apreendê-la. Limitando-se, quase exclusivamente, àquilo que é publicado e, na melhor das hipóteses, à comparação intra-mídia das coberturas, a uniformidade ideológica escapa às análises convencionais. Esse fato apenas reforça a necessidade de que ela seja identificada e tornada pública.
Em tempos de 1ª Conferência Nacional de Comunicação, os pressupostos implícitos sobre o papel que a grande mídia desempenha nas democracias liberais e sua uniformidade ideológica precisam ser debatidos. Afinal, todos queremos o aprimoramento democrático. Ou não?
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)