Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa alerta. Em parte

Folha e UOL divulgaram, também com repercussão no Estadão e seu site, que pesquisas recentes advertiram para que o uso da pílula anticoncepcional possa aumentar o risco de trombose venosa profunda, de membros inferiores. Embora o alerta seja bastante útil, ele está incompleto e essa questão de anticonceptivos e trombose merece considerações a mais, embora não alarmistas.

Em primeiro lugar, a notícia atual: Susan Jick e colaboradores da Boston University, Estados Unidos, demonstraram o risco de trombose venosa profunda [coágulos formados nas veias dos membros inferiores] em usuárias do anticoncepcional dospriperona sem risco para doença venosa prévia duas vezes mais alto que na população normal. O trabalho foi publicado na última edição do prestigiado Britsh Medical Journal e mereceu editorial comentando o trabalho favoravelmente por parte de Nick Dunn, da Universidade de Southampton, no Reino Unido. O lado interessante é que a relação do uso de anticoncepcionais e doenças trombóticas está longe de ser uma novidade: casos relatados quando do avento das pílulas, na década de 1950, levaram à procura de novos hormônios sintéticos e da procura das doses mais baixas possíveis, seguras para evitar a gravidez, mas também para evitar doenças.

Mesmo assim, na década de 1970, a Associação Médica Americana advertia para o fato de que a o uso da pílula em portadoras de enxaqueca que também fossem tabagistas aumentava em muito o risco de um acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI), ou derrame. Esse alerta gerou uma preocupação muito grande; além disso, havia sido internacionalmente adotada, em 1976, a aspirina como prevenção para os AVCs, via dois grandes trabalhos com enorme número de pacientes, um americano e outro canadense. Naturalmente procurou-se uma explicação dos mecanismos básicos envolvidos nessa doença.

Metodologia sensível

Vários trabalhos foram realizados e, resumidamente, pode-se argumentar que a culpa, por assim dizer, recaiu sobre as plaquetas: o sangue não possui apenas líquido, mas também partículas sólidas – as mais conhecidas são os glóbulos brancos e os vermelhos. Mas também existem as plaquetas, cuja função seria se aglomerarem em um ponto de um vaso sanguíneo rompido, por exemplo, para evitar uma hemorragia. A esse fenômeno se dá o nome de agregação plaquetária. O que vários pesquisadores encontraram foi que o portador de enxaqueca (não todos, mas alguns), teria uma predisposição para a agregação plaquetária sem que houvesse uma lesão vascular. Em outras palavras, as plaquetas se agregariam sem necessidade e isso poderia formar um trombo, ou coágulo, que impediria a passagem do sangue.

Pouco após descobriu-se como a aspirina evitaria essa agregação plaquetária, evitando a mesma por bloqueio da síntese de uma substância chamada tromboxane. E evidências foram encontradas no sentido de que os anticoncepcionais favoreceriam essa agregação em pessoas normais, levando-as a esse estado propício à formação espontânea de trombos, não apenas relacionadas à circulação cerebral, causando AVCs, mas também tromboses venosas em membros inferiores e mesmo infartos do miocárdio.

Não chegou a haver um pânico por conta disso, apesar da enormidade de mulheres que usavam a pílula: eu mesmo, nos anos 1980, passei a investigar esse fenômeno na Unifesp e no Hospital do Servidor Público Estadual de SP através de exames laboratoriais mais sofisticados em vários tipos de pacientes e não consegui reproduzir os achados da literatura; antes que eu julgasse ser incompetência minha, começaram a aparecer novas pesquisas com os mesmos resultados – em suma, a metodologia usada na década de 1970 parecia ser sensível demais e os novos métodos que estavam sendo usados nos anos posteriores colocaram esse risco em populações pequenas, embora não previsíveis, mas tornando o alerta da Associação Médica Americana citado como exagerado (embora na ocasião, com os dados e pesquisas da época, estivesse correto).

O uso do gestodeno

Novos métodos de avaliação começaram a ser utilizados nos anos 1990 e seguintes para detectar a chamada tromboflia, ou seja, a capacidade de uma pessoa ser mais propensa a formar coágulos. Vou citar alguns, desculpando-me antecipadamente pelos nomes feios: proteína C reativa ultrassensível, proteína S total e livre, apolipoproteínas A e B, antitrombinaIII, homocisteína, fator V de Leiden, além dos já consagrados exames de glicemia, colesterol, triglicérides, ácido úrico e microalbuminúria. A agregação plaquetária determinada em laboratório continua a ser usada. Desses exames, é interessante o tal fator V de Leiden, que estuda a mutação de um gene que favoreceria a ocorrência de tromboses venosas, especialmente as de membros inferiores.

Com a presença de tais fatores de risco, torna-se imperativo controlar a ingestão de açúcar, controlar o colesterol e assim por diante, além da possibilidade do uso da aspirina e outros medicamentos com a mesma finalidade para evitar a agregação das plaquetas, assim o ácido fólico e eventualmente a vitamina E, conforme se acredite mais ou menos nas evidências científicas encontradas. Digno de nota é observar que a ação da aspirina, que se julgava apenas como um impedimento da agregação das plaquetas, também é útil por seu efeito anti-inflamatório, pois no processo de formação de trombos verificou-se que inclui também um passo de inflamação.

Mas eis que nos anos 1990 começam a aparecer casos de AVCIs em jovens sem nenhum fator de risco para trombose, alguns graves (eu mesmo acompanhei certos casos muito tristes), que usavam o anticoncepcional gestodeno e tinham enxaqueca e fumavam. Voltamos ao alerta de 1970! A própria Organização Mundial da Saúde empreendeu um enorme estudo internacional a respeito e recomendou que não se usasse o gestodeno. Trabalhos apontando em direção oposta, muitos patrocinados pela indústria farmacêutica, fizeram o contrapeso. Como essas complicações certamente eram muito raras, envolviam a enxaqueca e o uso do cigarro (embora não se limitassem aos AVCs, mas também às tromboses venosas profundas), prevaleceu a questão da segurança do uso do gestodeno, com cuidados, em pacientes não tabagistas que, se passassem a experimentar dores de cabeça, deveriam parar imediatamente com o mesmo e comunicar a seus ginecologistas.

Mais seriedade

E agora a história volta a se repetir, com um sabor retrô de 1970, 1980,1990… Será que, como nesses trabalhos recentes no periódico britânico, que acusam o anticoncepcional de dobrar o risco de trombose em quem não tinha propensão à tromboflia, a propensão de criar coágulos não merece uma mais ampla e profunda reflexão? Parece que a cada década a história se repete, com anticoncepcionais diferentes, mas cujo mecanismo de ação é o mesmo, seja para seu efeito desejado, seja para os efeitos colaterais. E o risco, por assim dizer, de ter um bebê, ao menos em minha opinião, é muitissimamente mais tolerável que ter doenças trombóticas que podem deixar sequelas e eventualmente até matar…

Aí entra a questão da imprensa: repercutiu-se a notícia da semana do British MedicalJournal, mas não seria bom levar esse assunto adiante, com seriedade? Afinal, muitas mulheres saudáveis usam a pílula e acredito que ninguém as quer doentes. Nem as jornalistas…

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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp