De quanto tempo será o castigo? Quanto teremos de viver sem respirar? Quantos vão morrer? Há controvérsias.
Aquele câmbio de “fazer pobre viajar de avião” que o Lula exibe como prova do seu amor pela humanidade destruiu a indústria nacional. Juntamente com a desmontagem dos três eixos de produção de energia – a elétrica, a de biomassa de cana e a de petróleo – pelo tamponamento de tarifas, para “tirar 50 milhões de brasileiros da miséria” com uma caneta até à véspera da eleição, ele compõe hoje o epicentro do tsunami que empurra para cima, aos trancos e barrancos, todo o sistema nacional de preços relativos. A produção, o trabalho, a vida, enfim, terão de se reacomodar por ensaio e erro apenas para deter a queda.
Mas essa é a parte fácil. Em tempos de mercados globalizados, acertar entre o ministro Levy e os vendedores de “governabilidade” em quem será enfiado cada pedaço da continha doméstica é o de menos. Difícil será desprogramar a subversão conceitual que explica a nossa inesgotável tolerância ao abuso e mantém fora do horizonte qualquer possibilidade de “ajuste internacional”, o único capaz de matar a miséria.
Os buracos hoje se fecham ou se alargam em função do acerto entre cada comunidade de produtores e seus governos nacionais. O que decide é a carga que uns põem nas costas dos outros. Todo mundo sabe disso, mas se nós ainda guardamos alguma lucidez como indivíduos, não sobrou nenhum resquício dela enquanto sociedade. O Brasil perdeu a capacidade de discernir a fronteira básica entre a religião e a ciência e a grande pedreira vai ser recolocar a relação de causa e efeito na posição de centralidade que ela deve ter no nosso sistema de intelecção da realidade.
Brasília nem sequer sabe que existe uma crise. É lá o tal “país sem miséria” onde, em pleno desastre nacional, a verba dos partidos triplica, os meritíssimos se outorgam “auxílios” de fazer corar os cínicos, os indemissíveis “educadores” dos filhos do Brasil, enquanto morrem em massa os empregos cá fora, não deixam por menos de retumbantes 75% a sua “exigência” de “reajuste salarial”.
À espera do milagre
E a dívida dessa Petrobrás estuprada, “a maior de todo o mundo corporativo em todos os tempos”, quantas gerações de brasileiros que ainda nem nasceram viverão e morrerão pagando essa conta? Nem por isso ela deixa de continuar tida e afirmada como “um orgulho nacional”, sob um silêncio quase unânime de anuência. Nem as vísceras à mostra remetem àquela clássica, histórica, translúcida e necessária relação de causa e efeito entre a condição de empresa estatal num país pré-democrático e o aparelhamento do seu staff e dos seus recursos por um projeto de poder bandido, ainda que moremos todos no país onde nem uma única solitária pessoa duvida que, para onde quer que se olhe, “não se coloca um paralelepípedo no chão sem pagar propina”.
O máximo que se ousa timidamente pedir são menos ministérios. Das outras 37 fundações, 128 autarquias e 140 empresas estatais, somente no âmbito federal, ninguém fala. Da existência delas só fica sabendo, aliás, quem olha com lente o que “vaza” pelos interstícios dos “verdadeiros problemas nacionais” que a imprensa se permite ver. Adicionados Estados e municípios, ninguém sabe a quantas andamos, Estado x Nação. A Petrobrás sozinha tem 446 mil funcionários, algum jornal deixou escapar enquanto falava de coisa “mais importante”. Meio milhão, fora aposentados e encostados! É provável que esteja para o resto das petroleiras do mundo, somadas, como as nossas escolas de Direito estão para as do resto do mundo somadas. Nós “ganhamos”, temos mais!
Só de “sindicatos” de propriedade una e indivisível de “líderes” sem liderados sustentados pelo imposto sindical, a linha de frente dos “movimentos sociais” que se querem substituir ao sufrágio universal, parece que já temos 28 mil, segundo menção não provocada e acidentalmente publicada de fonte abalizada. “Justiças”? Temos cinco, completas, um plural que elimina, “em termos”, a possibilidade de se fazer a única que de fato “é”, que é aquela que se define pelo estrito singular. Apenas uma delas sangra nossos produtores em R$ 50 bilhões por ano – quase o ajuste inteiro que se está buscando – só em “processos trabalhistas”, indústria à qual se dedica com exclusividade metade daquela multidão de “advogados” que nossas incontáveis fábricas de rábulas “põem” todo ano. É a sementeira do que nos tornamos, a lumpencorrupção: “minta, traia, falsifique que o governo garante”.
Quem tem a menor sombra de dúvida de que um país assim não pode dar certo? Que este é o ambiente em que a corrupção e o crime estão como querem? Que não teremos condição de competir com ninguém e quebraremos a cara tantas vezes quantas tentarmos antes de curarmos essas feridas?
E, no entanto, para quebrar o encanto basta insistir obsessivamente numa conta simples: quanto estrago, quanta miséria, quanta violência evitável se torna obrigatória ao Brasil onde vale tudo para que o Brasil intocável possa continuar intocado? O que, a cada passo, estamos trocando pelo quê?
Nossas escolas ensinam que tocar nesse assunto é heresia sujeita a auto de fé. E nossas mentes jesuítico-aplainadas, tudo indica, estão prontas para absorver a lição. Nossos políticos de oposição, nas suas mais ousadas expansões “libertárias”, sugerem que enfrentemos tudo isso com revólveres sem balas. “Voto distrital, vá lá, mas sem recall!” E a imprensa, disciplinadamente, há anos não faz esse tipo de conta, ainda que o mínimo que exige a decência de quem se quer o alarme das iniquidades do mundo é que não fale de outra coisa. Como, porém, ela só se permite chamar de política aquilo que os políticos chamarem de política e de reforma o que eles, de livre e espontânea vontade, nos propuserem como reforma, o Brasil que trabalha, com o mundo dos Estados “ultralight” fungando-lhe no cangote, terá de seguir vivendo à espera de um milagre para começar a discutir qualquer coisa que possa concorrer para salvar-lhe a vida.
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Fernão Lara Mesquita é jornalista e escreve em http://www.vespeiro.com