Numa hora, o presidente-candidato Lula fustiga os "aloprados" do PT. Horas antes, esgoelou-se contra o "partidarismo da imprensa" apenas porque esta investiga as trapalhadas daqueles mesmos aloprados. Quem é aloprado? O que se pretende com este clima de desatinos?
Num discurso, o presidente-candidato apresenta-se como reencarnação de Jesus Cristo traído, em outro proclama que nenhuma denúncia [da imprensa] o impedirá de ganhar no primeiro turno. Mas as denúncias referem-se justamente àqueles que traíram Sua Excia…
Dane-se a coerência: o país virou um palanque amalucado onde a irracionalidade e a irresponsabilidade, em ritmo alucinado, promovem um dos mais lamentáveis espetáculos de vale-tudo eleitoral de todos os tempos.
Tática para confundir os adversários? Surto de esquizofrenia aguda? Ou apenas demagogia? Qualquer que seja o diagnóstico, o que não se pode admitir é a instalação de um clima delirante menos de uma semana antes daquele dia em que devem imperar a ponderação e o bom-senso.
Não se ameaça a democracia (ou, no caso, um dos seus esteios) às vésperas de eleições. Sobretudo quando um dos protagonistas, além de candidato, é também presidente da República – supremo magistrado, comandante em chefe das Forças Armadas, chefe do governo e da nação, encarregado de zelar pela tranqüilidade do processo político e pela harmonia institucional.
Serviços prestados
Há mais de um mês, quando a campanha estava morna, chata e apontava para uma vitória fácil do presidente Lula, o governo, associado ao que restou do partido do governo, resolveu intimidar a imprensa. Começaram a vazar documentos sobre o programa para o segundo mandato com referências explícitas à necessidade de "democratizar a comunicação". Estava clara a intenção de evitar surpresas e abortar o aparecimento de qualquer dossiê explosivo, capaz de alterar as tendências na reta final da disputa.
O dossiê explosivo acabou explodindo nas mãos do governo e do partido do governo duas semanas antes do pleito. Por incompetência, nervosismo ou desespero acionaram a conexão errada. A vitória assegurada foi pelos ares.
Ao invés de denunciar o candidato José Serra da tribuna do Senado, seu concorrente Aloízio Mercadante convocou a imprensa lúmpen para fazer o trabalhinho sujo. Não quis sujar as mãos, peitou um empresário de comunicação quase falido para jogar lama no ventilador.
A IstoÉ deu status político à imprensa marrom. A revista entra para a história do jornalismo como veículo-suicida, desatenta à autodesmoralização, preocupada apenas em cumprir o acerto para desmoralizar o adversário do mandante. E, em seguida, embolsar a bolada sob a forma de contratos de publicidade com alguma estatal. Há publicações que acabam gloriosamente, outras preferem rastejar [ver “Assalto à imprensa”, neste OI].
O presidente Lula está esquecendo sua dívida com a imprensa. Ele percorreu o caminho do sindicato até o Planalto empurrado e sustentado pela imprensa. E foi a imprensa semanal, orquestrada pelo general Golbery do Couto e Silva, que colocou na capa de diversas edições aquele barbudo desconhecido, líder sindical que não obedecia às palavras de ordem dos comunistas que operavam dentro do então MDB.
Sem a imprensa Lula não teria sobrevivido até as eleições de 2002 e, não fosse esta imprensa acostumada a ser simpática e simpatizante dos seus encantos, a imagem "Lula paz e amor" não teria colado na classe média.
Importante registrar que depois da posse em 2002 a imprensa não apresentou qualquer fatura pelos serviços prestados. Nem poderia fazê-lo, já que refletira com razoável eqüidistância as tendências da opinião pública.
[Incluído às 12h48 de 26/9: Declaração do deputado Paulo Delgado (PT-MG) apurada pela repórter Maiá Menezes, de O Globo (26/9): "Nós estamos cuspindo na rotativa em que comemos. O PT é um produto da imprensa. A imprensa sempre ampliou a nossa voz e a nossa luta. A cobertura democrática cobra mais do vencedor. Sempre. O PT sabe disso. É obrigação da imprensa livre. Nós devemos nos contentar em vencer as eleições. E não em triunfar sobre a liberdade de imprensa e de opinião".]
Cobrado e argüido
A idéia de um socorro às empresas necessitadas através de uma linha de crédito do BNDES veio do então ministro-chefe da Casa Cívil, José Dirceu, antes mesmo da posse. Mostrou-se inviável justamente porque as empresas de comunicação foram forçadas a reconhecer que não poderiam manter este tipo de relacionamento com o poder público.
A fatura foi cobrada pelo governo quando cedeu aos aloprados e forçou a criação do Conselho Federal de Jornalismo. O escândalo do mensalão, embora revelado pela mídia, não pode ser a ela creditado: foi produzido nos porões do governo e amplificado graças às contradições da base aliada do Planalto. A mídia não poderia se omitir ou ignorá-lo, mas não se deixou seduzir por nenhum dos seus aloprados. As teorias conspiratórias (como a história dos dólares de Cuba produzida nos laboratórios de Veja) não prosperaram graças ao ceticismo da própria mídia.
O Dossiê Vedoin-IstoÉ foi programado para detonar quando seria impossível desmenti-lo. A fúria dos seus mentores, executores e beneficiários origina-se justamente na impossibilidade de reverter as suas revelações e impedir os seus desdobramentos, mesmo que a Polícia Federal tenha arrefecido seu ímpeto investigador.
Colocar a imprensa sob suspeição, como fazem nos últimos dias o governo e seu partido, é uma manobra perigosa porque programa para o day after (2 ou 30 de outubro) um confronto que pode agravar as ameaças de ruptura já visíveis.
O país agüenta qualquer tranco no câmbio, no preço do petróleo, na renúncia de um presidente (como aconteceu com Collor de Melo). O país só não agüenta um furacão político. Alguns aprendizes de feiticeiros e outros aloprados tentaram no passado provocar uma divisão no país. Produziram uma tragédia.
A imprensa não é oráculo, mas um poder que deve ser cobrado e argüido. Sempre. Por todos. A tentativa de colocá-la sob suspeita porque tem sido capaz de revelar as malandragens dos aloprados de hoje favorece a cizânia e semeia hostilidades. Essa é uma praga para qual não temos antídotos e vacinas.