Na terça-feira (3/2), quando o ministro Antônio Palocci se expôs à mídia para – nas palavras unânimes da grande imprensa nacional – ‘tranqüilizar o mercado’, os principais jornais do país adotaram exatamente a mesma versão dos fatos econômicos e a mesma percepção do significado político da manifestação do ministro. Metade deles insinuou, a outra metade afirmou, que sua iniciativa representava uma declaração de unidade do governo, contra supostas divergências internas quanto à condução da política econômica. Coincidência: eram os mesmos jornais que vinham, desde o início de janeiro, apostando na existência de um conflito dessa natureza, e de proporções consideráveis, no círculo de influências mais próximo do presidente.
O ministro da Fazenda apresentou pouco mais do que obviedades, como o fato de que o desempenho da economia não depende unicamente das decisões mensais do Conselho de Política Econômica (Copom) quanto à taxa oficial de juros, e afirmou que os rumos da política econômica não irão se alterar. Mais tarde, comentou com assessores que tudo se torna mais difícil se, em vez de governar, o presidente e seus ministros tiverem de gastar muito tempo e energia para desfazer na mídia boatos ou tendências surgidos de especulações que a própria mídia gera ou amplifica.
O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, também observou, mais para o final da semana, em conversa com um interlocutor de fora do governo, que os boatos dando conta de sua saída do governo estavam atrapalhando sua atuação. Esse interlocutor, posteriormente, interpretou como uma preocupação do governo de que tais boatos poderiam reduzir a própria capacidade do BC de cumprir sua função.
Parte dessa conversação passou pelo ministro Luiz Dulci, secretário-geral da Presidência da República, para quem a imprensa brasileira falha ao não compreender que não é boa prática analisar os atos deste governo com a mesma lente com que interpretava, por exemplo, os atos dos governos anteriores. Posto que se trata de um governo fortemente definido por uma estratégia partidária dedicada a um plano de poder amadurecido ao longo de quase 30 anos, até mesmo os boatos e seus efeitos sobre o núcleo do poder têm uma natureza diferente. Por exemplo, há mais de seis meses o governo obteve informações sobre a origem de comentários sobre hábitos do presidente. Tais boatos, surgidos num site de notícias sobre política e economia, cruzaram uma coluna do Jornal do Brasil e alimentaram um desses meteoros que circulam pela internet.
Em ambos os casos – dos boatos sobre uma possível queda do presidente do BC à tentativa de se vincular eventuais gafes do presidente a tais supostos hábitos –, volta à tona certa questão que interessa fortemente aos observadores deste sítio: por que é que grande parte da imprensa brasileira não consegue produzir (ou reproduzir) um ambiente mais realista do que se passa no governo e nos outros centros de poder do país? Por que é que sempre se utiliza o paradigma mais conservador, ou o menos edificante? Como intérprete da realidade e mediadora da percepção dessa realidade, por que é que a imprensa não consegue sair da miudeza e oferecer uma visão panorâmica do ambiente social, político e econômico?
Questões de raiz
Há quem diga que é da natureza da imprensa essa perversidade, uma vez que, sendo uma instituição burguesa, interessa-lhe a manutenção do status quo e a permanência de um estado latente de crise, para que a insegurança desestimule atitudes radicais de contestação do sistema em si. Tese difícil de negar e difícil de aceitar passivamente, considerando-se que a História tem dado exemplos claros de que a falta de flexibilidade conduz a rupturas nas quais todos os lados acabam perdendo.
Aqueles que celebraram o fim do socialismo de Estado parecem não se haver dado conta de que a complexidade que se estabeleceu em seguida à derrocada do império soviético reduz progressivamente a eficácia dos velhos instrumentos de controle, entre os quais a imprensa. A serviço da dominação ou como instrumento de aperfeiçoamento da democracia, é no dia-a-dia que a imprensa mina ou cultiva suas chances de sobreviver a essa transição. E é no cotidiano que mais revela suas fragilidades.
Por enquanto, a imprensa parece acreditar piamente que a sociedade reage linearmente às coordenadas estabelecidas pela palavra (ou pela mensagem). Como as palavras que fazem coisas, na acepção observada pelo filósofo inglês John Austin (1911-1960). Em uma série de leituras feitas na Universidade Harvard, em 1955, sobre ‘Como fazer coisas com palavras’, Austin descreveu a função da palavra em nossa sociedade e o risco de se construir conhecimento sobre a palavra e não sobre a percepção direta da realidade. Ele observava, por exemplo, o poder simples mas definitivo de algumas palavras, que exercitamos ou aceitamos naturalmente, como aquelas que produzem acontecimentos: o veredicto que restringe a liberdade, o ‘sim’ que sela um acordo ou casamento etc. Lembra ainda que vivemos em sociedades movidas pela palavra, aplicada em leis, cânones religiosos e ritos grupais. Mas é na repetição, pela mídia, de declarações, crenças e pareceres – que são aceitos como verdade irrefutável ou expressão de conhecimento, pelo fato de serem proferidas por autoridades formais ou celebridades criadas pela própria mídia – que se encontra o gatilho dessa armadilha.
Austin lembra que as palavras não contêm toda a verdade, mas em geral nós as aceitamos com todo esse poder. Segundo o filósofo, a ilusão da palavra se manifesta quando a usamos para tentar substituir a realidade. A classificação que ele faz dos tipos de função ilusória pode nos dar uma idéia de como toda uma cultura pode ser induzida a enganos pela força de algumas expressões. Austin chama de palavras ‘performativas’ aquelas que pretendem criar realidade e de palavras ‘constatativas’ aquelas com as quais tentamos explicar a realidade. Lembra que, assim como o ‘saber’ se dissimula na palavra, muitas palavras em todos os idiomas são capazes de criar um falso ‘saber fazer’.
Não se parece um bocado com o viés como nossa imprensa tem interpretado os fatos econômicos? Ou como o paladar ou a audição específicos de um repórter tentam se impor como padrão – e não mais como referência – para se medir a qualidade do alimento ou de uma obra musical? Não estaria na assunção desse poder da palavra a raiz do desaparecimento da crítica teatral e de literatura da nossa imprensa? Ou do empobrecimento, mesmo, da linguagem da imprensa?
Idéias mais ambiciosas
Armadilhas como essa se apresentam continuamente no noticiário, induzindo a sociedade a estados de espírito que colocam em risco sua própria capacidade de evoluir ou de avaliar a verdadeira natureza de políticas econômicas ou de decisões cruciais para a sobrevivência da democracia. Enquanto a imprensa sustentar a ilusão da palavra que ‘faz’ coisas, mantém-se a vulnerabilidade da sociedade aos manipuladores e aos irresponsáveis a quem interessa unicamente manter valorizada sua parcela de influência, moeda de troca de alto poder na sociedade hipermediada.
Assim, a imagem de um cidadão suspeito se transforma, pela palavra, em julgamento, condenação e execução; um soluço de inflação pode ser amplificado para fora dos padrões estatísticos e representar o fim da estabilidade; uma frase infeliz pode ser tomada como ponto de partida para a destruição de uma biografia digna.
Nesse ambiente, a ampliação das potencialidades da mídia também significa maiores riscos de retrocesso. Quanto mais sofisticados os instrumentos, mais perversos os efeitos do sistema em termos de aumento da distância entre os que têm acesso à informação e aos meios de sobrevivência e aqueles que apenas ‘ouvem dizer’.
A invenção da linguagem digital revoluciona o mundo pela capacidade que proporciona ao ser humano de dominar um número crescente de variáveis da realidade objetiva, o que o coloca mais distante do indivíduo mergulhado em um ambiente alienado em relação aos centros de poder. Assim como na sociedade tribal, sob o governo de sacerdotes cuja função social é justamente afastar o indivíduo do desejo de controlar essas variáveis, entregando-as à autoridade religiosa, também nas sociedades periféricas, onde a imprensa não chega diretamente, crescem os poderes paralelos aos quais não interessam mudanças.
Tanto para o indivíduo exilado na periferia do sistema quanto para o cidadão em pleno gozo de direitos, situado nos círculos restritos de poder, como os ambientes corporativos ou acadêmicos, é fundamental uma imprensa comprometida com o estímulo à criação de consciência. A percepção de que algumas regras fundamente incrustadas em nosso modo de vida aparentemente deixam de fazer sentido num período extremamente curto – induzida por parte da mídia a idéia de que isso é decorrência natural e irrevogável do tempo que vivemos – produz nos indivíduos a sensação de quebra de uma ordem muito segura. A aparente incapacidade de oferecer alternativas, ou de garimpar na sociedade idéias mais ambiciosas sobre como projetar um futuro melhor, pode estar reduzindo as chances de a imprensa vir a se tornar protagonista central no momento em que as mudanças se tornarem possíveis.
Imprensa como adversária
Assim como o indivíduo ‘moderno’ se apega aos ícones da modernidade como sendo sua pátria real, ampliando ou reduzindo sua noção geográfica de nação – conforme o espaço de onde tira a sensação de poder e bem-estar por ‘pertencer’ a essa comunidade de valores –, também a imprensa parece se conformar em ser agente dessa sensação de pertencimento virtual. Dividimo-nos em tribos, e a audiência obtida de cada tribo, somada à de outra tribo, faz a medida de valor da mídia. Perde-se a noção do todo social, e a imprensa se desloca do centro para a periferia do sistema.
Na análise das decisões políticas e econômicas, uma imprensa desviada para uma visão marginal dificilmente terá condições de interpretar a realidade de forma confiável para seus leitores ou espectadores. Talvez essa seja a origem da dificuldade evidente em analisar as decisões de governo tidas como de inspiração ‘liberal’, quando se estabeleceu que o núcleo do governo é ‘socialista’ e estatizante. Leia-se, a respeito, a esclarecedora contribuição da repórter Mônica Eizaguirre no caderno Eu &, do jornal Valor Econômico, na primeira edição de fevereiro, sobre a visão de Estado mínimo do governo petista. Simples, direto, o texto soa como um ‘você sabia?’, que alinha curiosidades sobre as quais não deveria haver surpresas na imprensa, nesta altura da História.
Incapaz de rever certos conceitos que cristalizou nos anos 1980, a imprensa acaba se tornando vulnerável a manipulações e intrigas. Isso tanto pode induzi-la a referendar boatos e desperdiçar recursos de apuração em pautas ‘bichadas’, como pode mantê-la presa a um círculo de preconceitos a partir dos quais nunca será capaz de proporcionar um retrato fiel da realidade do país.
Como já se disse neste espaço, o governo do PT sabe o que quer, mas ninguém conhece a medida de sua competência para realizar esses planos sem quebrar o país. A grande imprensa insiste em achar que pode pautar o governo, ignorando que no centro do poder está um grupo de indivíduos que se preparou para esse momento tendo toda a grande imprensa como adversária.
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(*) Jornalista