Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A imprensa que faz pensar

Junto com o debate sobre crimes e impunidade iniciado há mais de um mês, em seguida à morte do menino João Hélio, há uma outra discussão, menos perceptível, porém mais profunda e que talvez seja capaz de alterar drasticamente certos comportamentos da elite brasileira.


Trata-se da reação irracional contra o artigo escrito na Folha de S.Paulo pelo filósofo Renato Janine Ribeiro, no domingo de Carnaval. O professor Janine, esteve na terça-feira (27/2) em nosso programa de TV e no domingo (4/3), no mesmo jornal [ver abaixo], continuou a se defender do linchamento moral a que foi submetido. ‘Pago um preço por ter dito o que, no fundo, muitos sentiram.’


Mas o que foi que Janine sentiu e escreveu? Que o assassinato do menino foi um crime contra a humanidade e que diante desta barbaridade ele chegou a desejar a morte dos criminosos. Foi sincero, mas a hipocrisia coletiva abomina os rasgos de sinceridade, prefere os tabus politicamente corretos.


Recurso rápido


Janine não propôs coisa alguma. Como filósofo, filosofou. Sentiu, sofreu e externou o seu horror. É isso que a sociedade espera de um pensador: que seja capaz de pensar, pensar em público, livremente, sem constrangimentos.


Pensar não faz mal, o que faz mal é repetir automaticamente, de forma impensada, chavões e palavras de ordem. Temos que encarar estas crueldades, perceber a sua terrível dimensão. O assassinato dos três ativistas franceses de direitos humanos por um ex-menino de rua por eles recuperado derruba um monte de doutrinas e nos coloca diante de uma realidade inescapável: alguma coisa está errada no âmago da sociedade brasileira e não será o PAC que poderá consertá-la.


Um recurso mais rápido, menos dispendioso e muito mais humano, pode ser a disposição de pensar. A imprensa foi inventada justamente para fazer pensar e não para calar o pensamento.


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Dizer o indizível


Renato Janine Ribeiro (*) # copyright ‘Mais!’, Folha de S.Paulo, 4/3/2007


Meu artigo sobre o odioso assassínio de João Hélio [no ‘Mais!’ de 18/2] causou uma polêmica que se desviou muito do que eu disse. Incomodou-me que na Folha se comentasse mais meu ensaio do que o crime contra a humanidade.


Ao expor meus sentimentos (e era isso o que buscava ante o horror que vivia), deixei claro que estava tão perplexo que não cabia propor nada de concreto, tal como a pena de morte. Alguns leitores, entre eles jornalistas, acadêmicos e advogados, leram em minha indignação o que lhes conveio. Retomo o assunto.


Porque disse que minha reação ao crime incluía desejar a morte de seus autores, quiseram entender que defendia sua execução sob tortura, a vingança ou mesmo o sadismo.


Ora, ‘imaginar’, ‘torcer’ não é ‘propor, fazer, recomendar’. Desde Freud, sabe-se que é normal sentir raiva. Humanizamo-nos quando aprendemos a nos conter. Mas conter-se não é varrer a emoção para baixo do tapete.


Alguns, compreensivos, lamentaram que eu levasse a público o que deveria ter guardado para mim ou amigos. Discordo, embora pague um preço por ter dito em alto e bom som o que muitos, no fundo, também sentiram.


Filosofar, como percebeu [o jornalista] Alberto Dines, se faz melhor em público. O esvaziamento e a esterilidade do espaço público, no Brasil, se deve muito ao fato de que fazemos cena: intelectuais, advogados, acadêmicos simulam uma sobriedade que não têm.


O intelectual não pode dizer só o que agrada.


Não ajuda, em nosso debate político e social, fingir uma civilização que tem pés de barro. Calar em público os sentimentos que se referem à vida pública induz à idéia do intelectual como quem pensa sem paixões, a esconder a face oculta de nossa comum humanidade.


Cisão radical


Pessoas comuns que somos, nossa reflexão sobre o que fazer com crimes não pode se contentar com princípios impecáveis, a fundar leis que ninguém contesta, mas tampouco reconhece ou respeita. Nossa reflexão e ação não devem ser esterilizadas por uma cisão radical entre sentir e pensar.


Pois, sem eu renunciar à defesa do processo justo, à importância da educação (mas que demora a dar resultados), vejo que os discursos construtivos esbarram num fato bruto, o horror, que é quase da ordem do indizível. O horror é sentimento típico do século 20.


Palavras são poucas para enunciar os casos em que falha o grande projeto de Rousseau, a compaixão, a piedade: o padecer junto com qualquer ser vivo que sofra.


O horrível dos infanticidas é a extinção cabal da compaixão. ‘Não sei, não tenho filho’, disse um dos assassinos, ao lhe perguntarem o que imaginava sentirem os pais de João Hélio. Mas sentir com o outro não exige ter vivido pessoalmente a mesma experiência.


Preocupa-me a permanência de um discurso acabado que condena a indignação, respondendo a ela com artigos de leis e uma moral pronta.


Boa parte da população está tão revoltada que descrê do discurso, sincero ou hipócrita, da lei e de quem diz aplicá-la. A ausência do Estado se mede pela ausência do respeito e garantia dos direitos humanos de uma população que repudia o crime.


Essa exaustão de nosso semi-Estado de Direito é grave, porque sem a confiança do povo soberano sobram só resíduos do direito. Uma democracia sem povo o que é?


Expressar o horror, desnudar a própria alma sem censura, talvez sirva para destacar que há gritos que não podem ser silenciados e ignorados quando se discute a construção de uma nova sociedade.


O crime hediondo não é um crime qualquer. Uma coisa é fazer do crime um meio de vida (própria), outra é fazer dele um meio de morte (alheia). O assassino cruel passou há muito dos limites da civilidade. Espanta que alguém deseje, para ele, tormentos? Desejar não é fazer. Mas uma indignação que o patriciado não escuta corrói as bases da pólis.


A vingança privada só deu lugar à justiça pública após lento avanço nas relações sociais. E a justiça se manteve porque garantiu o cumprimento das leis.


Mas se lembram da bóia-fria que matou aquele que violentou seu filhinho? Devia ela crer no devido processo legal? Mas assim não se devolve a justiça à vingança, não renuncia o poder público a qualquer utilidade?


Pergunto: em que medida o Judiciário brasileiro beneficia o dia-a-dia de uma população que não desfruta do direito à segurança que, lembra-me Lenio Streck [professor e procurador de Justiça do Rio Grande do Sul], está na Constituição?


Enquanto alguns publicistas exibem fé plena nas instituições, pura decência, a maioria se estarrece diante da barbárie.


Admirando Rousseau, talvez o filósofo moral de maior grandeza, penso porém que a compaixão é uma construção laboriosa feita em sociedade. Divide o humano do bestial. Criminosos, hoje, lucram na razão direta de sua falta de compaixão, de sua desumanidade.


Tenho sustentado que -se a modernidade política surge quando passam à esfera pública conceitos do direito privado romano- nossa época se caracteriza inversamente pela passagem, para a esfera privada, de conceitos que eram do âmbito político.


Paradigma individual


O príncipe de Maquiavel, sem garantia de triunfar num mundo sem regras, hoje é paradigma de indivíduos que já não têm parâmetros prontos para a vida profissional e pessoal -vivendo no chão ensaboado do ‘condottiere’ maquiaveliano.


Por que não pensar, então, que o nazismo pode também estar presente em indivíduos -que agem com igual falta de compaixão, mesmo sem ter o projeto hitlerista de dominar o mundo? Há nazismo quando um grupo ou um indivíduo busca extirpar as últimas marcas de humanidade.


Continuo vendo razões contra a pena de morte: o risco do erro judicial irreparável, a vergonha que é o Estado matar.


Mas as estatísticas mostram o fracasso do Estado em recuperar o criminoso, tarefa que parece exigir dedicação quase religiosa.


Ouvi o padre Júlio Lancelotti [da Pastoral do Menor] dizer que a liberdade assistida, alternativa inteligente ao aprisionamento dos menores delinqüentes, para que eles trabalhem, estudem, saiam do crime, custaria seis salários mínimos per capita ao mês.


É caro, embora talvez metade do custo da Febem, com a vantagem de que pode recuperar a pessoa para a vida inteira, enquanto a Febem faz o contrário. É a fábula do filho pródigo aplicada.


Frustração


Na insuficiência das soluções leigas para os problemas do crime, não tenho visto saídas a não ser as marcadas pela religião e/ou por uma dedicação leiga da ordem do heroísmo, como a dos militantes de direitos humanos. Se houver salvação, está aí. E é difícil. Repetem-se as faixas do Rio contra o crime. A maioria esmagadora da população é contra o crime, quer compaixão.


Mas, até agora, adiantou a indignação popular? O meio jurídico e político teve palavras de consolo e apoio para a multidão sofrida ou frustrou-a, como o juiz de menores que disse que o assassino jovem de João Hélio ficará três anos internado -e falou isso como se fosse normal? Como podem as pessoas falar tão friamente e querer compreensão?


Os infanticídios não mudam minha defesa dos direitos humanos porque, como sustento em ‘O Afeto Autoritário’ [ed. Ateliê], os direitos humanos não são só os direitos do suspeito perante a polícia (embora preciosos) mas também a igualdade dos sexos, o direito ao trabalho e a uma vida digna -e o direito de João Hélio a viver uma vida normal e longa.


Mas me fizeram pensar no nazismo entre nós.


Esta, que ninguém comentou, talvez seja a idéia mais original de meu artigo: a comparação do atual horror privado ao nazista. Parece que não se quer ver o nazismo aqui, na esquina. O século 20, o de maior progresso na história, foi rachado ao meio pelos totalitarismos, dos quais o pior foi o hitlerista.


Remeti a duas idéias-chave. Primeira: dizer o horror é dificílimo, como sabe quem narrou os campos de concentração ou a tortura na América do Sul -assunto que no Brasil é calado, haja vista a crítica da imprensa ao processo dos Teles contra seu torturador.


Foi tocante, na novela ‘Páginas da Vida’, familiares de assassinados falarem. Porque não dizer -ou escutar- o horror corrompe a todos. Acentua o teor de hipocrisia na vida social. Esteriliza ainda mais a vida pública.


A segunda idéia é a de que, se o nazismo é o inimigo do humano (do humano como valor, ‘humane’, em inglês, e não apenas como descrição, ‘human’), se falar sobre ele é um esforço e refletir sobre ele é difícil, ele se situa nas exceções da nossa espécie. Institui-se como estado de exceção.


Carl Schmitt [jurista alemão, 1888-1985] pensou a soberania não a partir do ‘nós, o povo’, da regra republicana, mas da exceção ditatorial. A exceção vira regra. Para dizer o humano, prefiro Camus, que falava no caráter irredutível de cada sofrimento pessoal intenso.


Nenhuma explicação dá conta do assassínio de um filho. Políticas podem resolver o problema mais adiante, mas nossa sociedade está cada vez mais ferida pelo extermínio do seu futuro. As soluções eram devidas ontem. Se não forem cobradas com muita intensidade, não virão nunca.


Se a emoção crescente da perda injusta do filho ou da filha -isto é, o que jamais será banalizado, porque sempre será insuportável- se potencializar, cada um decidindo sua própria lei, que restará de nossos laços sociais ou, pelo menos, políticos?


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NOTA: Devo a Alberto Dines, Lenio Streck, Silvia Pimentel, Anita Novinski, Olgária Matos, Manuel da Costa Pinto, Edson Teles, Sara Albieri, Eric Calderoni, Yumi Suzuki, Newton Pimenta, Auxiliadora Nicolato e outros algumas idéias e expressões que aparecem neste artigo, cuja responsabilidade, porém, é minha.


(*) Professor de Ética e Filosofia Política na USP e autor de, entre outros, A Ética na Política (ed. Lazuli)